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Natal, e não Dezembro

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Entremos, apressados, friorentos, numa gruta, no bojo de um navio, num presépio, num prédio, num presídio no prédio que amanhã for demolido... Entremos, inseguros, mas entremos. Entremos e depressa, em qualquer sítio, porque esta noite chama-se Dezembro, porque sofremos, porque temos frio. Entremos, dois a dois: somos duzentos, duzentos mil, doze milhões de nada. Procuremos o rastro de uma casa, a cave, a gruta, o sulco de uma nave... Entremos, despojados, mas entremos. De mãos dadas talvez o fogo nasça, talvez seja Natal e não Dezembro, talvez universal a consoada. David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal

Estrela

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Estrela que me nasceste Quando a vista mal te alcança Nessa abóbada celeste, Onde a nossa alma descansa A sua última esperança... Estrela que me nasceste Quando a vista mal te alcança! Antes nascesses mais cedo, Estrela da madrugada! E não já noite cerrada... Que até no céu mete medo Ver essa estrela isolada... Antes nascesses mais cedo. Estrela da madrugada! João de Deus

Navio

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Tenho a carne dorida Do pousar de umas aves Que não sei de onde são: Só sei que gostam de vida Picada em meu coração. Quando vêm, vêm suaves; Partindo, tão gordas vão! Como eu gosto de estar Aqui na minha janela A dar miolos às aves! Ponho-me a olhar para o mar: —Olha-me um navio sem rumo! E, de vê-lo, dá-lhe a vela, Ou sejam meus cílios tristes: A ave e a nave, em resumo, Aqui, na minha janela. Vitorino Nemésio
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A casada infiel Eu que a levei ao rio, pensando que era donzela, porém tinha marido. Foi na noite de Santiago e quase por compromisso. Apagaram-se os lampiões e acenderam-se os grilos. Nas últimas esquinas toquei seus peitos dormidos, e se abriram prontamente como ramos de jacintos. A goma de sua anágua soava em meu ouvido como uma peça de seda rasgada por dez punhais. Sem luz de prata em suas copas as árvores estão crescidas, e um horizonte de cães ladra mui longe do rio. Passadas as sarçamoras, os juncos e os espinhos, debaixo de seus cabelos fiz uma cova sobre o limo. Eu tirei a gravata. Ela tirou o vestido. Eu, o cinturão com revólver. Ela, seus quatro corpetes. Nem nardos nem caracóis têm uma cútis tão fina, nem os cristais com lua reluzem com esse brilho. Suas coxas me escapavam como peixes surpreendidos, a metade cheias de lume, a metade cheias de frio. Aquela noite corri o melhor dos caminhos, montado em potra de nácar sem bridas e sem estribos. Não quero dizer, por homem, as c
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Grito Hacia Roma (Desde La Torre Del Crysler Building) Manzanas levemente heridas por los finos espadines de plata, nubes rasgadas por una mano de coral que lleva en el dorso una almendra de fuego, peces de arsénico como tiburones, tiburones como gotas de llanto para cegar una multitud, rosas que hieren y agujas instaladas en los caños de la sangre, mundos enemigos y amores cubiertos de gusanos caerán sobre ti. Caerán sobre la gran cúpula que untan de aceite las lenguas militares donde un hombre se orina en una deslumbrante paloma y escupe carbón machacado rodeado de miles de campanillas. Porque ya no hay quien reparta el pan ni el vino, ni quien cultive hierbas en la boca del muerto, ni quien abra los linos del reposo, ni quien llore por las heridas de los elefantes. No hay más que un millón de herreros forjando cadenas para los niños que han de venir. No hay más que un millón de carpinteros que hacen ataúdes sin cruz. No hay más que un gentío de lamentos que se abren las ropas en esp
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Pequeño Poema Infinito Para Luis Cardoza y Aragón Equivocar el camino es llegar a la nieve y llegar a la nieve es pacer durante veinte siglos las hierbas de los cementerios. Equivocar el camino es llegar a la mujer, la mujer que no teme la luz, la mujer que mata dos gallos en un segundo, y luz que no teme a los gallos y los gallos que no saben cantar sobre la nieve. Pero si la nieve se equivoca de corazón puede llegar el viento Austro y como el aire no hace caso de los gemidos tendremos que pacer otra vez las hierbas de los cementerios. Yo vi dos dolorosas espigas de cera que enterraban un paisaje de volcanes y vi dos niños locos que empujaban llorando las pupilas de un asesino. Pero el dos no ha sido nunca un número porque es una angustia y su sombra, porque es la guitarra donde el amor se desespera, porque es la demostración de otro infinito que no es suyo y es las murallas del muerto y el castigo de la nueva resurrección sin finales. Los muertos odian el número dos, pero el número d
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Por que me falas nesse idioma? perguntei-lhe, sonhando. Em qualquer língua se entende essa palavra. Sem qualquer língua. O sangue sabe-o. Uma inteligência esparsa aprende esse convite inadiável. Búzios somos, moendo a vida inteira essa música incessante. Morte, morte. Levamos toda a vida morrendo em surdina. No trabalho, no amor, acordados, em sonho. A vida é a vigilância da morte, até que o seu fogo veemente nos consuma sem a consumir. Cecília Meireles

Noche de amor insomne

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Noche arriba los dos con luna llena, yo me puse a llorar y tú reías. Tu desdén era un dios, las penas mías momentos y palomas en cadenas. Noche abajo los dos. Cristal de pena, llorabas tú por hondas lejanías sobre tu débil corazón de arena. La aurora nos unió sobre la cama, las bocas puestas sobre el chorro helado de una sangre sin fin que se derrama. Y el sol entró por el balcón cerrado y el coral de la vida abrió su rama sobre mi corazón amortajado. Garcia Lorca

Morte de D. Quixote

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Pobres, gritai comigo: Abaixo o D. Quixote com cabeça de nuvens e espada de papelão! (E viva o Chicote no silêncio da nossa Mão!) Pobres, gritai comigo: Abaixo o D. Quixote que só nos emperra de neblina! (E viva o Archote que incendeia a terra, mas ilumina!) Pobres, gritai comigo: Abaixo o cavaleiro de lança de soluços e bola de sabão no elmo de barbeiro! (E vivam os nossos Pulsos que, num repelão, hão-de rasgar o nevoeiro!) José Gomes Ferreira

Ciudad Sin Sueño

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(Nocturno de Brooklyn Bridge) No duerme nadie por el cielo. Nadie, nadie. No duerme nadie. Las criaturas de la luna huelen y rondan sus cabañas. Vendrán las iguanas vivas a morder a los hombres que no sueñan y el que huye con el corazón roto encontrará por las esquinas al increíble cocodrilo quieto bajo la tierna protesta de los astros. No duerme nadie por el mundo. Nadie, nadie. No duerme nadie. Hay un muerto en el cementerio más lejano que se queja tres años porque tiene un paisaje seco en la rodilla; y el niño que enterraron esta mañana lloraba tanto que hubo necesidad de llamar a los perros para que callase. No es sueño la vida. ¡Alerta! ¡Alerta! ¡Alerta! Nos caemos por las escaleras para comer la tierra húmeda o subimos al filo de la nieve con el coro de las dalias muertas. Pero no hay olvido, ni sueño: carne viva. Los besos atan las bocas en una maraña de venas recientes y al que le duele su dolor le dolerá sin descanso y al que teme la muerte la llevará sobre sus hombros. Un día
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Rio Abaixo Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga... Quase noite. Ao sabor do curso lento Da água, que as margens em redor alaga, Seguimos. Curva os bambuais o vento. Vivo, há pouco, de púrpura, sangrento, Desmaia agora o Ocaso. A noite apaga A derradeira luz do firmamento... Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga. Um silêncio tristíssimo por tudo Se espalha. Mas a lua lentamente Surge na fímbria do horizonte mudo: E o seu reflexo pálido, embebido Como um gládio de prata na corrente, Rasga o seio do rio adormecido. Olavo Bilac

O navio de espelhos

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O navio de espelhos não navega cavalga Seu mar é a floresta que lhe serve de nível Ao crepúsculo espelha sol e lua nos flancos Por isso o tempo gosta de deitar-se com ele Os armadores não amam a sua rota clara (Vista do movimento dir-se-ia que pára) Quando chega à cidade nenhum cais o abriga O seu porão traz nada nada leva à partida Vozes e ar pesado é tudo o que transporta (E no mastro espelhado uma espécie de porta) Seus dez mil capitães têm o mesmo rosto A mesma cinta escura o mesmo grau e posto Quando um se revolta há dez mil insurrectos (Como os olhos da mosca reflectem os objectos) E quando um deles ala o corpo sobre os mastros e escruta o mar do fundo Toda a nave cavalga (como no espaço os astros) Do princípio do mundo até ao fim do mundo Mário Cesariny

MAR PORTUGUÊS

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Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. in Mensagem, Fernando Pessoa
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Chamo-Te Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio E suportar é o tempo mais comprido. Peço-Te que venhas e me dês a liberdade, Que um só de Teus olhares me purifique e acabe. Há muitas coisas que não quero ver. Peço-Te que sejas o presente. Peço-Te que inundes tudo. E que o Teu reino antes do tempo venha E se derrame sobre a Terra Em Primavera feroz precipitado. Sophia de Mello Breyner Andresen
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«ESTÃO PODRES AS PALAVRAS....» Estão podres as palavras - de passarem por sórdidas mentiras de canalhas que as usam ao revés como o carácter deles. E podres de sonâmbulos os povos ante a maldade à solta de que vivem a paz quotidiana da injustiça. Usá-las puras - como serão puras, se caem no silêncio em que os mais puros não sabem já onde a limpeza acaba e a corrupção começa? Como serão puras se logo a infâmia as cobre de seu cuspo? Estão podres: e com elas apodrece a mundo e se dissolve em lama a criação do homem que só persiste em todos livremente onde as palavras fiquem como torres erguidas sexo de homens entre o céu e a terra. Jorge de Sena
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Greguerías Si vais a la felicidad llevad sombrilla. _________________ El reloj es una bomba de tiempo, de más o menos tiempo. _________________ Después de la emigración no queda más que la transmigración. _________________ Los recuerdos encogen como las camisetas. _________________ La felicidad consiste en ser un desgraciado que se sienta feliz. _________________ El reloj no existe en las horas felices. _________________ Somos lazarillos de nuestros sueños. _________________ Aburrirse es besar a la muerte. _________________ Los monos no encanecen porque no piensan. _________________ La manera de curarse el corazón es ahorrando presentimientos. _________________ Nostalgia: neuralgia de los recuerdos. _________________ El sueño es un depósito de objetos extraviados. _________________ El filósofo antiguo sacaba la filosofía ordeñándose la barba. _________________ Hay que ser un poco idiota en la vida, pues si no se aprovechan los demás y lo son sólo ellos. _________________ Era tan moral
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A Rosa de Hiroxima Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. Vinicius de Moraes
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Vinícius De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente Fez-se do amor próximo distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. Vinicius de Moraes
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A palavra impossível Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim A vida que não se troca por palavras. Deram-mo para eu guardar dentro de mim As vozes que só em mim são verdadeiras. Deram-mo para eu guardar dentro de mim A impossível palavra da verdade. Deram-me o silêncio como uma palavra impossível, Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível, Para eu guardar dentro de mim, Para eu ignorar dentro de mim A única palavra sem disfarce - A Palavra que nunca se profere. Adolfo Casais Monteiro
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O Tempo não sabe nada o tempo não sabe nada o tempo não tem razão o tempo nunca existiu é da nossa invenção se abandonarmos as horas para nos sentirmos sós meu amor o tempo somos nós o espaço tem o volume da imaginação além do nosso horizonte existe outra dimensão o espaço foi construído sem princípio nem fim meu amor tu cabes dentro de mim o meu tesouro és tu eternamente tu não há passos divergentes para quem se quer encontrar a nossa história começa na total escuridão onde o mistério ultrapassa a nossa compreensão a nossa história é o esforço para alcançar a luz meu amor o impossível seduz o meu tesouro és tu eternamente tu não há passos divergentes para quem se quer encontrar Jorge Palma

Greguerías-Amor

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Como daba besos lentos duraban más sus amores. _________________ A veces un beso no es más que chewing gum compartido. _________________ La reja es el teléfono de más corto hilo para hablar de amor. _________________ Amor es despertar a una mujer y que no se indigne. _________________ Daba besos de segunda boca. _________________ El primer beso es un robo. _________________ Cuando una mujer te plancha la solapa con la mano ya estás perdido. _________________ Cuando la mujer pide ensalada de frutas para dos perfecciona el pecado original. _________________ El amor nace del deseo repentino de hacer eterno lo pasajero. _________________ En la manera de matar la colilla contra el cenicero se reconoce a la mujer cruel. _________________ Aquella mujer me miró como a un taxi desocupado. _________________ Hay matrimonios que se dan la espalda mientras duermen para que el uno no le robe al otro los sueños ideales. _________________ Si os tiembla la cerilla al dar lumbre a una mujer, estáis perd

I CANNOT live with you.

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Emily Dickinson (1830–86). Complete Poems. 1924. Part Three: Love XII I CANNOT live with you, It would be life, And life is over there Behind the shelf The sexton keeps the key to, Putting up Our life, his porcelain, Like a cup Discarded of the housewife, Quaint or broken; A newer Sèvres pleases, Old ones crack. I could not die with you, For one must wait To shut the other’s gaze down,— You could not. And I, could I stand by And see you freeze, Without my right of frost, Death’s privilege? Nor could I rise with you, Because your face Would put out Jesus’, That new grace Glow plain and foreign On my homesick eye, Except that you, than he Shone closer by. They ’d judge us—how? For you served Heaven, you know, Or sought to; I could not, Because you saturated sight, And I had no more eyes For sordid excellence As Paradise. And were you lost, I would be, Though my name Rang loudest On the heavenly fame. And were you saved, And I condemned to be Where you were not, That self were hell to me.

Solidão

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Solidão Ó solidão! À noite, quando, estranho, Vagueio sem destino, pelas ruas, O mar todo é de pedra... E continuas. Todo o vento é poeira... E continuas. A Lua, fria, pesa... E continuas. Uma hora passa e outra... E continuas. Nas minhas mãos vazias continuas, No meu sexo indomável continuas, Na minha branca insónia continuas, Paro como quem foge. E continuas. Chamo por toda a gente. E continuas. Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas. Invento um verso... E rasgo-o. E continuas. Eterna, continuas... Mas sei por fim que sou do teu tamanho! Pedro Homem de Mello

Poema que aconteceu.

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Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem começo. A mão que escreve este poema não sabe o que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse. Carlos Drummond de Andrade
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Eros Nunca o Verão se demorara assim nos lábios e na água - como podíamos morrer, tão próximos e nus e inocentes? Eugénio de Andrade, Mar de Setembro Uma escolha a duas mãos feito com a Helenita

Torga há 100 anos

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Segredo Sei um ninho e o ninho tem um ovo; e o ovo, redondinho, tem lá dentro um passarinho novo. Mas escusas de me tentar: nem o tiro nem o ensino; quero ser um bom menino, e guardar este segredo comigo, e ter depois um amigo que faça o pino a voar. Miguel Torga
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As pedras As pedras falam? pois falam mas não à nossa maneira, que todas as coisas sabem uma história que não calam. Debaixo dos nossos pés ou dentro da nossa mão o que pensarão de nós? O que de nós pensarão? As pedras cantam nos lagos choram no meio da rua tremem de frio e de medo quando a noite é fria e escura. Riem nos muros ao sol, no fundo do mar se esquecem. Umas partem como aves e nem mais tarde regressam. Brilham quando a chuva cai. Vestem-se de musgo verde em casa velha ou em fonte que saiba matar a sede. Foi de duas pedras duras que a faísca rebentou: uma germinou em flor e a outra nos céus voou. As pedras falam? pois falam. Só as entende quem quer, que todas as coisas têm um coisa para dizer. Maria Alberta Meneres
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O que diz a Morte "Deixai-os vir a mim, os que lidaram; Deixai-os vir a mim, os que padecem; E os que cheios de mágoa e tédio encaram As próprias obras vãs, de que escarnecem... Em mim, os Sofrimentos que não saram, Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem. As torrentes da Dor, que nunca param, Como num mar, em mim desaparecem." - Assim a Morte diz. Verbo velado, Silencioso intérprete sagrado Das coisas invisíveis, muda e fria. É, na sua mudez, mais retumbante Que o clamoroso mar; mais rutilante, Na sua noite, do que a luz do dia. Antero de Quental
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Autografia Sou um homem um poeta uma máquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configurada um avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte! os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada tenho um pé que já deu a volta ao mundo e a família na rua um é loiro outro moreno e nunca se encontrarão conheço a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa) tenho um sol sobre a pleura e toda a água do mar à minha espera quando amo imito o movimento das marés e os assassínios mais vulgares do ano sou, por fora de mim, a minha gabardina eu o pico do Everest posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és terra onde eu há milhares de anos vivo a parábo

O navio de espelhos

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O navio de espelhos não navega cavalga Seu mar é a floresta que lhe serve de nível Ao crepúsculo espelha sol e lua nos flancos Por isso o tempo gosta de deitar-se com ele Os armadores não amam a sua rota clara (Vista do movimento dir-se-ia que pára) Quando chega à cidade nenhum cais o abriga O seu porão traz nada nada leva à partida Vozes e ar pesado é tudo o que transporta (E no mastro espelhado uma espécie de porta) Seus dez mil capitães têm o mesmo rosto A mesma cinta escura o mesmo grau e posto Quando um se revolta há dez mil insurrectos (Como os olhos da mosca reflectem os objectos) E quando um deles ala o corpo sobre os mastros e escruta o mar do fundo Toda a nave cavalga ( Como no espaço os astros) Do princípio do mundo até ao fim do mundo. -Mário Cesariny

Se houvesse degraus na terra...

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Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. No céu podia tecer uma nuvem toda negra. E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, e à porta do meu amor o ouro se acumulasse. Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se, levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra, e a fímbria do mar, e o meio do mar, e vermelhas se volveram as asas da águia que desceu para beber, e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas. Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo. Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata. Correram os rapazes à procura da espada, e as raparigas correram à procura da mantilha, e correram, correram as crianças à procura da maçã. Herberto Helder

Não toques nos objectos imediatos

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Não toques nos objectos imediatos. A harmonia queima. Por mais leve que seja um bule ou uma chávena, são loucos todos os objectos. Uma jarra com um crisântemo transparente tem um tremor oculto. É terrível no escuro. Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer. A boca fica em chaga. Herberto Helder

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

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Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho... eu sou um rei Que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços. Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu ceptro e coroa - eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços. Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria. Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia. Fernando Pessoa
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Génesis De mim não falo mais :não quero nada. De Deus não falo:não tem outro abrigo. Não falarei também do mundo antigo, pois nasce e morre em cada madrugada. Nem de existir,que é a vida atraiçoada, para sentir o tempo andar comigo; nem de viver,que é liberdade errada, e foge todo o Amor quando o persigo. Por mais justiça ...-Ai quantos que eram novos em vâo a esperaram porque nunca a viram! E a eternidade...Ó transfusâo dos povos! Não há verdade:O mundo não a esconde. Tudo se vê: só se não sabe aonde. Mortais ou imortais,todos mentiram. Jorge de Sena
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Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos detidos: hei-de partir quando as flores chegarem à sua imagem. Este verão concentrado em cada espelho. O próprio movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias internos. Vou morrer assim, arfando entre o mar fotográfico e côncavo e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas o sangue que se agrava. Está cheio de candeias, o verão de onde se parte, ígneo nessa criança contemplada. Eu abandono estes jardins ferozes, o génio que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva aos precipícios de agosto, e a mansidão traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas. Cada dia é um abismo atómico. E o leite faz-se tenro durante os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro que talha no calcário a rosa congenital. A carne, asfixiam-na os astros profund
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Acordar tarde tocas as flores murchas que alguém te ofereceu quando o rio parou de correr e a noite foi tão luminosa quanto a mota que falhou a curva - e o serviço postal não funcionou no dia seguinte procuras ávido aquilo que o mar não devorou e passas a língua na cola dos selos lambidos por assassinos - e a tua mão segurando a faca cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado dos amantes ocasionais - nada a fazer irás sozinho vida dentro os braços estendidos como se entrasses na água o corpo num arco de pedra tenso simulando a casa onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia Al Berto
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Digam que foi mentira, que não sou ninguém, que atravesso apenas ruas da cidade abandonada fechada como boca onde não encontro nada: não encontro respostas para tudo o que pergunto nem na verdade pergunto coisas por aí além Eu não vivi ali em tempo algum Ruy Belo
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Fonte, II No sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem os dedos amarelos das candeias. Que balouçam. Que são puras. Gotas e candeias puras. E as mães aproximam-se soprando os dedos frios. Seu corpo move-se pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões e órgãos mergulhados, e as calmas mães intrínsecas sentam-se nas cabeças filiais. Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado, vendo tudo, e queimando as imagens, alimentando as imagens, enquanto o amor é cada vez mais forte. E bate-lhes nas caras, o amor leve. O amor feroz. E as mães são cada vez mais belas. Pensam os filhos que elas levitam. Flores violentas batem nas suas pálpebras. Elas respiram ao alto e em baixo. São silenciosas. E a sua cara está no meio das gotas particulares da chuva, em volta das candeias. No contínuo escorrer dos filhos. As mães são as mais altas coisas que os filhos criam, porque se colocam na combustão dos filhos, porque os filhos estão como invasore
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Adiamento Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... Esta espécie de alma... Só depois de amanhã... Hoje quero preparar-me, Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Depois
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Bucólica A vida é feita de nadas: De grandes serras paradas À espera de movimento; De searas onduladas Pelo vento; De casas de moradia Caídas e com sinais De ninhos que outrora havia Nos beirais; De poeira; De sombra de uma figueira; De ver esta maravilha: Meu Pai a erguer uma videira Como uma mãe que faz a trança à filha. S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937 Miguel Torga
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Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada! Porque não vens de olhos enxutos e não despes as mãos de mágoas e de lutos! Porque hás-de vir semimorta, com ar macerado e de bruxedo, e não despes os ritos, o cansaço, e as lágrimas e os mitos e o medo! Porque não vens natural Como um corpo sadio que se entrega, e não destranças os cabelos, e não nimbas de luz a tua treva! Porque hás-de vir com a cor da morte - se a morte já temos nós! Porque adormeces os gestos, porque entristeces os versos, e nos quebras os membros e a voz! Porque é que vens adorada por uma longa procissão de velas, se eu estou à tua espera em cada estrada, nu, inteiramente nu, sem mistérios, sem luas e sem estrelas! Ó noite eterna e velada, senhora da tristeza, sê alegria! Vem de outra maneira ou vai-te embora, e deixa romper o dia! Eugénio de Andrade
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Eu falo das casas e dos homens Eu falo das casas e dos homens, dos vivos e dos mortos: do que passa e não volta nunca mais... Não me venham dizer que estava materialmente previsto, ah, não me venham com teorias! Eu vejo a desolação e a fome, as angústias sem nome, os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas. E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima, uma insignificante parcela da tragédia. Eu, se visse, não acreditava. Se visse, dava em louco ou profeta, dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada, - mas não acreditava! Olho os homens, as casas e os bichos. Olho num pasmo sem limites, e fico sem palavras, na dor de serem homens que fizeram tudo isto: esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, esta lama de sangue e alma, de coisa a ser, e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança, se o ódio sequer servirá para alguma coisa... Deixai-me chorar - e chorai! As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, de termos sa
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Mar Mar, metade da minha alma é feita de maresia Pois é pela mesma inquietação e nostalgia, Que há no vasto clamor da maré cheia, Que nunca nenhum bem me satisfez. E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia Mais fortes se levantam outra vez, Que após cada queda caminho para a vida, Por uma nova ilusão entontecida. E se vou dizendo aos astros o meu mal É porque também tu revoltado e teatral Fazes soar a tua dor pelas alturas. E se antes de tudo odeio e fujo O que é impuro, profano e sujo, É só porque as tuas ondas são puras. Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia I
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Pietà Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado, Da pedra e da tristeza, no teu canto, Comigo ao colo, morto e nu, gelado, Embrulhado nas dobras do teu manto. Sobre o golpe sem fundo do meu lado Ia caindo o rio do teu pranto; E o meu corpo pasmava, amortalhado, De um rio amargo que adoçava tanto. Depois, a noite de uma outra vida Veio descendo lenta, apetecida Pela terra-polar de que me fiz; Mas o teu pranto, pela noite além, Seiva do mundo, ia caindo, Mãe, Na sepultura fria da raiz. Lisboa, Cadeia do Aljube, Natal de 1939 - Como se fosse ainda em S. Pedro de Roma. Miguel Torga

O andaime

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O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado! Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão. Este seu correr vazio Figura, anónimo e frio, A vida vivida em vão. A sprança que pouco alcança! Que desejo vale o ensejo? E uma bola de criança Sobre mais que minha sprança, Rola mais que o meu desejo. Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam - verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer. Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou. A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha: Despiu-se, e o reino acabou. Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas! Que sonhos o sonho e a vida! Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido. Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido. Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças, Mas as mortas esperanças
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Os olhos do poeta O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo, e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem. Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas, e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria, com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento. Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos, e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas e corr
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Ambiciosa Para aqueles fantasmas que passaram, Vagabundos a quem jurei amar, Nunca os meus braços lânguidos traçaram O voo dum gesto para os alcançar... Se as minhas mãos em garra se cravaram Sobre um amor em sangue a palpitar... - Quantas panteras bárbaras mataram Só pelo raro gosto de matar! Minha alma é como a pedra funerária Erguida na montanha solitária Interrogando a vibração dos céus! O amor dum homem? - Terra tão pisada, Gota de chuva ao vento baloiçada... Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!... Florbela Espanca, Charneca em Flor (1930)
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Romance do terceiro oficial de finanças Ah! as coisas incríveis que eu te contava assim misturadas com luas e estrelas e a voz vagarosa como o andar da noite! As coisas incríveis que eu te contava e me deixavam hirto de surpresa na solidão da vila quieta!... Que eu vinha alta noite como quem vem de longe e sabe o segredo dos grandes silêncios - os meus braços no jeito de pedir e os meus olhos pedindo o corpo que tu mal debruçavas da varanda!... (As coisas incríveis eu só as contava depois de as ouvir do teu corpo, da noite e da estrela, por cima dos teus cabelos. Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos quando eu ia namorar-te...) Mas tudo isso, que era tudo para nós, não era nada da vida!... Da vida é isto que a vida faz. Ah! sim, isto que a vida faz!... - isto de tu seres a esposa séria e triste de um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!... Manuel da Fonseca
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Já Bocage não sou!... À cova escura Já Bocage não sou!... À cova escura Meu astro vai parar desfeito em vento... Eu aos céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse pura! Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria: Outro Aretino fui... A santidade Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia, Rasga meus versos, crê na eternidade! Bocage
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Desde a aurora Como um sol de polpa escura para levar à boca, eis as mãos: procuram-te desde o chão, entre os veios do sono e da memória procuram-te: à vertigem do ar abrem as portas: vai entrar o vento ou o violento aroma de uma candeia, e subitamente a ferida recomeça a sangrar: é tempo de colher: a noite iluminou-se bago a bago:vais surgir para beber de um trago como um grito contra o muro. Sou eu,desde a aurora, eu-a terra-que te procuro. de Obscuro Domínio Eugénio de Andrade