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Laranja, peso, potência

Laranja, peso, potência. Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância. A matéria pensa. As madeiras incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar, tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja recebe soberania. E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça. A ferida que a gente é: de mundo e invenção. Laranja assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa inocência da terra. Herberto Helder

As putas da Avenida

Eu vi gelar as putas da Avenida ao griso de Janeiro e tive pena do que elas chamam em jargão a vida com um requebro triste de açucena vi-as às duas e às três falando como se fala antes de entrar em cena o gesto já compondo à voz de mando do director fatal que lhes ordena essa pose de flor recém-cortada que para as mais batidas não é nada senão fingirem lírios da Lorena mas a todas o griso ia aturdindo e eu que do trabalho tinha vindo calçando as luvas senti tanta pena Fernando Assis Pacheco

Se tanta pena tenho merecida

Se tanta pena tenho merecida Em pago de sofrer tantas durezas, Provai, Senhora, em mim vossas cruezas, Que aqui tendes u~a alma oferecida. Nela experimentai, se sois servida, Desprezos, desfavores e asperezas, Que mores sofrimentos e firmezas Sustentarei na guerra desta vida. Mas contra vosso olhos quais serão? Forçado é que tudo se lhe renda, Mas porei por escudo o coração. Porque, em tão dura e áspera contenda, É bem que, pois não acho defensão, Com me meter nas lanças me defenda. Luís de Camões

Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio - é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te

Narciso

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia, Dobrado em dois sobre o meu próprio poço... Ah, que terrível face e que arcabouço Este meu corpo lânguido escondia! Ó boca tumular, cerrada e fria, Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!... Ó lindos olhos sôfregos, de moço, Numa fronte a suar melancolia!... Assim me desejei nestas imagens. Meus poemas requintados e selvagens, O meu Desejo os sulca de vermelho: Que eu vivo à espera dessa noite estranha, Noite de amor em que me goze e tenha, ... Lá no fundo do poço em que me espelho! José Régio

Arma secreta

Tenho uma arma secreta ao serviço das nações. Não tem carga nem espoleta mas dipara em linha recta mais longe que os foguetões. Não é Júpiter, nem Thor, nem Snark ou outros que tais. É coisa muito melhor que todo o vasto teor dos Cabos Canaverais. A potência destinada às rotações da turbina não vem da nafta queimada, nem é de água oxigenada nem de ergóis de furalina. Erecta, na noite erguida, em alerta permanente, espera o sinal da partida. Podia chamar-se VIDA. Chama-se AMOR, simplesmente. António Gedeão , Poesias Completas

Creio nos anjos que andam pelo mundo

creio nos anjos que andam pelo mundo, creio na deusa com olhos de diamantes, creio em amores lunares com piano ao fundo, creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes; creio num engenho que falta mais fecundo de harmonizar as partes dissonantes, creio que tudo é eterno num segundo, creio num céu futuro que houve dantes, creio nos deuses de um astral mais puro, na flor humilde que se encosta ao muro, creio na carne que enfeitiça o além, creio no incrível, nas coisas assombrosas, na ocupação do mundo pelas rosas, creio que o amor tem asas de ouro. amém. Natália Correia

Poema para uma ideia de tempo

Sabes do peso das folhas quando caem no Outono Sabes das cinzas que sobem pelo céu da boca do vulcão que acordou Tens a pintura dos anos No corpo que envelhece Todo o teu corpo Entre a vida e a morte Entre o início e o fim Entre mar Mundo Universo Sabes do Big-Bang e do espaço que se expande Sabes de uma teoria e de buracos negros e cordas Sabes da areia que se esvai no diminuto aperto da ampulheta Sabes do ritmo da música e de ondas que andam os oceanos O evaporar do poema A história Dos homens De nascimentos, mulheres Paixões que se imortalizam em deixas de teatro Ódios, que criam guerras Que criam lágrimas Nos olhos do soldado que é abatido na trincheira em mil novecentos e dezassete Sabes também que a tua voz é como uma folha de Outono E que um poema tem apenas a eternidade dos olhos de quem o lê. Pedro de Mendoza

Dois poetas, o mesmo mote

Descalça vai pera a fonte Descalça vai pera a fonte Lianor pela verdura; Vai fermosa, e não segura. Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata, Cinta de fina escarlata, Sainho de camalote; Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura. Vai fermosa, e não segura. Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entraçado, Fita de cor encarnado, Tão linda que o mundo espanta. Chove nela graça tanta, Que dá graça à fermosura. Vai fermosa, e não segura. Luís de Camões ------------------------------------------- Poema da auto-estrada Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina, de impaciente nervura. como guache lustroso, amarelo de idantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta: Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem sorte, Sou a irmã do sonho, e desta sorte, Sou a crucificada...a dolorida... Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!... Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber porquê... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou! Florbela Espanca , Livro de Mágoas
... Fez-se de espanto o mar da minha vida Súbito tempestuoso no nascimento e na morte na sublime e imprevisível luz do amanhecer nas estrelas da noite velhas de milhões e milhões de anos Fez-se de vento Agora suave e depois mortal Como o passar do tempo Varrendo o Universo negro absoluto O vento criador de ondas Que dançam na superfície dos oceanos Dançam no início e no fim das coisas Na brisa que abraça a manhã Na ideia de amor E na esperança para lá do fim Fez-se o meu corpo como uma onda na praia apenas um momento na vida do Universo Pedro de Mendoza
As musas cegas, VII Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar. Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois, ressoando violentamente pelos corredores e paredes e pátios desta casa que eu sou. Que eu serei até não sei quando. É uma doce pancada à porta, alguma coisa que desfaz e refaz um homem. Uma pancada breve, breve - e eu estremeço como um archote. Eu diria que cantam, depois de baterem, que a noite se move um pouco para a frente, para a eternidade. Eu diria que sangra um ponto secreto do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. Escuta: que a noite vagarosamente se queima como a minha face. Essa criança tem boca, há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. Um novo instrumento, uma taça situou-se na terra, e há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia, uma flor, uma pequena lira, podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo - um novo instrumento rodeado pelas campânulas inclinadas, por ligeiras pedras húmidas, pelo
ODA AL CALDILLO DE CONGRIO EN el mar tormentoso de Chile vive el rosado congrio, gigante anguila de nevada carne. Y en las ollas chilenas, en la costa, nació el caldillo grávido y suculento, provechoso. Lleven a la cocina el congrio desollado, su piel manchada cede como un guante y al descubierto queda entonces el racimo del mar, el congrio tierno reluce ya desnudo, preparado para nuestro apetito. Ahora recoges ajos, acaricia primero ese marfil precioso, huele su fragancia iracunda, entonces deja el ajo picado caer con la cebolla y el tomate hasta que la cebolla tenga color de oro. Mientras tanto se cuecen con el vapor los regios camarones marinos y cuando ya llegaron a su punto, cuando cuajó el sabor en una salsa formada por el jugo del océano y por el agua clara que desprendió la luz de la cebolla, entonces que entre el congrio y se sumerja en gloria, que en la olla se aceite, se contraiga y se impregne. Ya sólo es necesario dejar en el manjar caer la crema como una rosa espesa, y al
Não basta abrir a janela Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. Falas de civilização, e de não dever ser, Ou de não dever ser assim. Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos, Com as cousas humanas postas desta maneira. Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos. Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor. Escuto sem te ouvir. Para que te quereria eu ouvir? Ouvindo-te nada ficaria sabendo. Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo. Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida A querer inventar a máquina de fazer felicidade! Entre o que vejo de um
"Greguerías" sobre as Cidades Nerviosismo de la ciudad: no poder abrir el paquetito de azúcar para el café. _________________ Venecia es el sitio en que navegan los violines. _________________ Muelle: rúbrica del acero. _________________ El Coliseo en ruinas es como una taza rota del desayuno de los siglos. _________________ Entre los carriles de la vía del tren crecen las flores suicidas. _________________ Lo que más duerme en la noche son las torres. _________________ La mañana está llena de turistas buscando casas de cambio. _________________ Los invernaderos son las cárceles modelos de las plantas. _________________ Los arcos de triunfo son elefantes petrificados. _________________ El obelisco es la palmatoria de los siglos. _________________ Al oír la sirena parece que el barco se suena la nariz. _________________ Hay una campana que suena en el alba y que no está en ningún campanario. _________________ Al pasar un barco entre dos casas, parece un barco de teatro entre b
"Greguerías" sobre Animais Un chino inventó al gato. _________________ El langostino huele a todo el mar. _________________ Nutria: una rata con gabán de señora. _________________ Lo que más denigra al perro ?y él lo sabe? es el rascarse la cabeza con la pata de atrás. _________________ La lagartija es el broche de las tapias. _________________ Todos los pájaros son mancos. _________________ Búho: gato emplumado. _________________ El murciélago vuela con la capa puesta. _________________ Los cuervos se tiñen. _________________ La mosca se posa sobre lo escrito, lo lee y se va como despreciando lo que ha leído. ¡Es el más exigente crítico literario! _________________ Los cocodrilos están siempre en pleno concurso de bostezos. _________________ La serpiente mide el bosque para saber cuántos metros tiene y decírselo al ángel de las estadísticas. _________________ El camello tiene cara de cordero jorobado. _________________ La inmortalidad del cangrejo consiste en andar hacia atr
Greguerías sobre o Amor Como daba besos lentos duraban más sus amores. _________________ A veces un beso no es más que chewing gum compartido. _________________ La reja es el teléfono de más corto hilo para hablar de amor. _________________ Amor es despertar a una mujer y que no se indigne. _________________ Daba besos de segunda boca. _________________ El primer beso es un robo. _________________ Cuando una mujer te plancha la solapa con la mano ya estás perdido. _________________ Cuando la mujer pide ensalada de frutas para dos perfecciona el pecado original. _________________ El amor nace del deseo repentino de hacer eterno lo pasajero. _________________ En la manera de matar la colilla contra el cenicero se reconoce a la mujer cruel. _________________ Aquella mujer me miró como a un taxi desocupado. _________________ Hay matrimonios que se dan la espalda mientras duermen para que el uno no le robe al otro los sueños ideales. _________________ Si os tiembla la cerilla al dar lumbre
Ramón Gómez de la Serna Greguerías Con el monóculo, el ojo se vuelve reloj. _________________ Carterista: caballero de la mano en el pecho... de otro. _________________ Los presos a través de la reja ven la libertad a la parrilla. _________________ La raya del pelo es feliz. _________________ La cabeza es la pecera de las ideas. _________________ Al ombligo le falta el botón. _________________ Franklin salía los días de tormenta con un paraguas dotado de pararrayos _________________ Las patillas son los galones de sargento de la cara. _________________ Los bostezos son oes que huyen. _________________ Al pobre botánico no le quedan sino las papeletas de empeño de los árboles. _________________ El apuntador es el eco antes que la palabra. _________________ Los pellizcos estrangulan lunares. _________________ El estornudo es la interjección del silencio. _________________ El que juega dados parece tirar al aire los huesos que le sobran. _________________ Las pulseras representan esclavit
Os amantes sem dinheiro Tinham o rosto aberto a quem passava. Tinham lendas e mitos e frio no coração. Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão. Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados; e olhos de oiro onde ardiam os sonhos mais tresmalhados. Tinham fome e sede como os bichos, e silêncio à roda dos seus passos. Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos espaços. Eugénio de Andrade
Trova do Vento que Passa Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pát
Ode a Eros Eros, Cupido, Amor, pequeno Deus travesso Com quem todos brincamos! Brincando nos ferimos, Ferindo-nos gozamos, Se rimos já choramos, Mal que choramos rimos... Já, voltados do avesso, Por igual o voltamos, O torturamos nós como ele nos tortura, Descemos aos recessos da criatura... Pequenino gigante! Sonhava, ou não sonhava, Quem te representou risonho e pequenino Que de Hércules a clava Não pesa como pesa a tua mão de infante, Nem seu furor destrói Como nos dói Teu riso de menino? Nas tuas leves setas Nas flâmulas gentis Que cantam os poetas E os namorados juvenis, Que longos ópios e letais licores, Que pântanos de lodo e que furores, Que grinaldas de louros e de espinhos, Que abissais labirintos de caminhos! Mascarilha de seda e de veludo Sob a qual o olhar brilha, a boca ri, Que olhar ambíguo ou mudo, Que boca atormentada Não terás além ti Na mascarada? Pai da Crueldade e da Piedade, Filho do Crime e da Beleza, Que infante serás tu, que, desde que há Idade, Aos Ícaros opõe
A fome de Camões Este vulto, portanto, que caminha Altas horas, ao frio das nortadas, É Camões que se definha Nas ruas de Lisboa abandonadas. É Camões que a sorte vil, mesquinha, Faz em noites de fome torturadas, Ele o velho cantor de heróis guerreiros!... Vagar errante como os vis rafeiros. Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo, O seu amparo e seu bordão no mundo, Morreu-lhe o humilde companheiro antigo, No seu vácuo deixando um vácuo fundo. Hoje, pois, triste, velho, sem abrigo, Faminto, abandonado e vagabundo, Tenta esmolar também pelas esquinas. Ó lágrimas!... Ó glória! Ó ruínas!... Gomes Leal , A fome de Camões
Estigma Filhos dum deus selvagem e secreto E cobertos de lama, caminhamos Por cidades, Por nuvens E desertos. Ao vento semeamos o que os homens não querem. Ao vento arremessamos as verdades que doem E as palavras que ferem. Da noite que nos gera, e nós amamos, Só os astros trazemos. A treva ficou onde Todos guardamos a certeza oculta Do que nós não dizemos, Mas que somos. José Carlos Ary dos Santos
Carlos Tê / Rui Veloso Andava eu na quarta classe e fiz uma redacção Sobre o que eu queria ser um dia quando crescesse Quero ser um marinheiro, sulcar o azul do mar Vaguear de porto em porto até um dia me cansar Quero ser um saltimbanco, saber truques e cantigas Ser um dos que sobe ao palco e encanta as raparigas A sessôra chamou-me ao palco e deixou-me descomposto Ó menino atolombado, que gracinha de mau gosto Lá fiz outra redacção, quero ser um funcionário Ser zeloso ter patrão, deitar cedo e ter horário Ser um barquinho apagado sem prazer em navegar Humilde e bem comportado sem fazer ondas no mar A sessôra bateu palmas e deu-me muitos louvores Apontou-me como exemplo e passou-me com quinze valores
o dia de amanhã Um dia encontrarei uma porta no caminho que se abrirá com estrondo, apesar de eu não sonhar ser um cavaleiro andante nem andar pela noite escura. Provavelmente não será a porta de nenhum palácio. Não terá história essa porta. Talvez possa descansar da viagem da vida diante dessa porta talvez parar um pouco depois de todos os passos tantos caminhos os percorridos e os não percorridos. Aí, em face da possibilidade de todas as possibilidades próprias do que é desconhecido o corpo regenerará. uma nova vitalidade embriagará o corpo mutilado de tempo. Diante dessa porta talvez o corpo receba um futuro perante a hipótese de escolha talvez o homem que então for eu seja verdadeiramente talvez um dia quando descansar em frente a uma porta que se abre para o dia de amanhã. Pedro de Mendoza
Poema do fecho-éclair Filipe II tinha um colar de oiro, tinha um colar de oiro com pedras rubis. Cingia a cintura com cinto de oiro, com fivela de oiro, olho de perdiz. Comia num prato de prata lavrada girafa trufada, rissóis de serpente. O copo era um gomo que em flor desabrocha, de cristal de rocha do mais transparente. Andava nas salas forradas de Arrás, com panos por cima, pela frente e por trás. Tapetes flamengos, combates de galos, alões e podengos, falcões e cavalos. Dormia na cama de prata maciça com dossel de lhama de franja roliça. Na mesa do canto vermelho damasco, e a tíbia de um santo guardada num frasco. Foi dono da Terra, foi senhor do Mundo, nada lhe faltava, Filipe Segundo. Tinha oiro e prata, pedras nunca vistas, safiras, topázios, rubis, ametistas. Tinha tudo, tudo, sem peso nem conta, bragas de veludo, peliças de lontra. Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho-éclair. António Gedeão , Poesias completas
Na idade dos porquês Professor diz-me porquê? Por que voa o papagaio que solto no ar que vejo voar tão alto no vento que o meu pensamento não pode alcançar? Professor diz-me porquê? Por que roda o meu pião? Ele não tem nenhuma roda E roda gira rodopia e cai morto no chão... Tenho nove anos professor e há tanto mistério à minha roda que eu queria desvendar! Por que é que o céu é azul? Por que é que marulha o mar? Porquê? Tanto porquê que eu queria saber! E tu que não me queres responder! Tu falas falas professor daquilo que te interessa e que a mim não interessa. Tu obrigas-me a ouvir quando eu quero falar. Obrigas-me a dizer quando eu quero escutar. Se eu vou a descobrir Fazes-me decorar. É a luta professor a luta em vez de amor. Eu sou uma criança. Tu és mais alto mais forte mais poderoso. E a minha lança quebra-se de encontro à tua muralha. Mas enquanto a tua voz zangada ralha tu sabes professor eu fecho-me por dentro faço uma cara resignada e finjo finjo que não penso em nada. Mas p
O Palácio da Ventura Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura! Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formusura! Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais! Antero de Quental
Poema à mãe No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe! Tudo porque já não sou o retrato adormecido no fundo dos teus olhos! Tudo porque tu ignoras que há leitos onde o frio não se demora e noites rumorosas de águas matinais! Por isso, às vezes, as palavras que te digo são duras, mãe, e o nosso amor é infeliz. Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração no retrato da moldura! Se soubesses como ainda amo as rosas, talvez não enchesses as horas de pesadelos... Mas tu esqueceste muita coisa! Esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu, e até o meu coração ficou enorme, mãe! Olha - queres ouvir-me? -, às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos; ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura; ainda oiço a tua voz: "Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal..." Mas - tu sabes! - a noite é enorme e todo o meu corpo cresceu... Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber. N
In memoriam Ao meu morto querido Na cidade de Assis, «il Poverello» Santo, três vezes santo, andou pregando Que o Sol, a Terra, a flor, o rocio brando, Da pobreza o tristíssimo flagelo, Tudo quanto há de vil, quanto há de belo, Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando, Pelas estradas da Umbria foi forjando Da cadeia do amor o maior elo! «Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água...» Ah! Poverello! Em mim, essa lição Perdeu-se como vela e mar de mágoa Batida por furiosos vendavais! - Eu fui na vida a irmã de um só Irmão, E já não sou a irmã de ninguém mais! Florbela Espanca
Poema da auto-estrada Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina, de impaciente nervura. como guache lustroso, amarelo de idantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta: Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa e bem segura. Com um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta, lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe Leonor se o que lhe chega aos ouvidos são ecos
Cão Cão passageiro, cão estrito Cão rasteiro cor de luva amarela, Apara lápis, fraldiqueiro, Cão liquefeito, cão estafado Cão de gravata pendente, Cão de orelhas engomadas, de remexido rabo ausente, Cão ululante, cão coruscante, Cão magro, tétrico, maldito, a desfazer-se num ganido, a refazer-se num latido, cão disparado: cão aqui, cão ali, e sempre cão. Cão marrado, preso a um fio de cheiro, cão a esburgar o osso essencial do dia a dia, cão estouvado de alegria, cão formal de poesia, cão-soneto de ão-ão bem martelado, cão moido de pancada e condoído do dono, cão: esfera do sono, cão de pura invenção, cão pré fabricado, cão espelho, cão cinzeiro, cão botija, cão de olhos que afligem, cão problema... Sai depressa, ó cão, deste poema! Alexandre O'Neill
Abaixo el-rei Sebastião É preciso enterrar el-rei Sebastião é preciso dizer a toda a gente que o Desejado já não pode vir. É preciso quebrar na ideia e na canção a guitarra fantástica e doente que alguém trouxe de Alcácer Quibir. Eu digo que está morto. Deixai em paz el-rei Sebastião deixai-o no desastre e na loucura. Sem precisarmos de sair do porto temos aqui à mão a terra da aventura. Vós que trazeis por dentro de cada gesto uma cansada humilhação deixai falar na nossa voz a voz do vento cantai em tom de grito e de protesto matai dentro de vós el-rei Sebastião. Quem vai tocar a rebate os sinos de Portugal? Poeta: é tempo de um punhal por dentro da canção. Que é preciso bater em quem nos bate é preciso enterrar el-rei Sebastião. Manuel Alegre , O canto e as armas
Fernando Pessoa Teu canto justo que desdenha as sombras Limpo de vida viúvo de pessoa Teu corajoso ousar não ser ninguém Tua navegação com bússola e sem astros No mar indefinido Teu exacto conhecimento impossessivo. Criaram teu poema arquitectura E és semelhante a um deus de quatro rostos E és semelhante a um deus de muitos nomes Cariátide de ausência isento de destinos Invocando a presença já perdida E dizendo sobre a fuga dos caminhos Que foste como as ervas não colhidas. Sophia de Mello Breyner Andresen
Poema da auto-estrada Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina, de impaciente nervura. como guache lustroso, amarelo de idantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta: Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa e bem segura. Com um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta, lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe Leonor se o que lhe chega aos ouvidos são ec
Aos Poetas Somos nós As humanas cigarras! Nós, Desde os tempos de Esopo conhecidos. Nós, Preguiçosos insectos perseguidos. Somos nós os ridículos comparsas Da fábula burguesa da formiga. Nós, a tribo faminta de ciganos Que se abriga Ao luar. Nós, que nunca passamos A passar!... Somos nós, e só nós podemos ter Asas sonoras, Asas que em certas horas Palpitam, Asas que morrem, mas que ressuscitam Da sepultura! E que da planura Da seara Erguem a um campo de maior altura A mão que só altura semeara. Por isso a vós, Poetas, eu levanto A taça fraternal deste meu canto, E bebo em vossa honra o doce vinho Da amizade e da paz! Vinho que não é meu, mas sim do mosto que a beleza traz! E vos digo e conjuro que canteis! Que sejais menestreis De uma gesta de amor universal! Duma epopeia que não tenha reis, Mas homens de tamanho natural! Homens de toda a terra sem fronteiras! De todos os feitios e maneiras, Da cor que o sol lhes deu à flor da pele! Crias de Ad
Pedra filosofal Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso, em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos, que em oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho alacre e sedento, de focinho pontiagudo, que foça através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa dos ventos, Infante, caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cis
Os paraísos artificiais Na minha terra, não há terra, há ruas; mesmo as colinas são de prédios altos com renda muito mais alta. Na minha terra, não há árvores nem flores. As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês, e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores. O cântico das aves ? não há cânticos, mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º. E a música do vento é frio nos pardieiros. Na minha terra, porém, não há pardieiros, que são todos na Pérsia ou na China, ou em países inefáveis. A minha terra não é inefável. A vida na minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito. Jorge de Sena
Nirvana Para além do Universo luminoso, Cheio de formas, de rumor, de lida, De forças, de desejos e de vida, Abre-se como um vácuo tenebroso. A onda desse mar tumultuoso Vem ali expirar, esmaecida... Numa imobilidade indefinida termina ali o ser, inerte, ocioso... E quando o pensamento, assim absorto, emerge a custo desse mundo morto E torna a olhar as coisas naturais, À bela luz da vida, ampla, infinita, Só vê com tédio, em tudo quanto fita, A ilusão e o vazio universais. Antero de Quental
O Palácio da Ventura Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura! Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formusura! Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais! Antero de Quental
Visita Adornou o meu quarto a flor do cardo, Perfumei-o de amílscar rescendente; Vesti-me com a púrpura fulgente, Ensaiando meus cantos como um bardo. Ungi as mãos e a face com o nardo Crescido nos jardins do Oriente, A receber com pompa, dignamente, misteriosa visita a quem aguardo. Mas que filha de reis, que anjo ou que fada Era essa que assim a mim descia, Do meu casebre à húmida pousada? Nem princesas, nem fadas. Era, flor, era a tua lembrança que batia Às portas de ouro e luz do meu amor! Antero de Quental
Nau Catrineta Lá vem a Nau Catrineta Que tem muito que contar! Ouvide agora, senhores, Uma história de pasmar. Passava mais de ano e dia Que iam na volta do mar, Já não tinham que comer, Já não tinham que manjar. Deitaram sola de molho Para o outro dia jantar; Mas a sola era tão rija, Que a não puderam tragar. Deitaram sortes à ventura Qual se havia de matar; Logo foi cair a sorte No capitão general. - "Sobe, sobe, marujinho, Àquele mastro real, Vê se vês terras de Espanha, As praias de Portugal!" - "Não vejo terras de Espanha, Nem praias de Portugal; Vejo sete espadas nuas Que estão para te matar." - "Acima, acima, gageiro, Acima ao tope real! Olha se enxergas Espanha, Areias de Portugal!" - "Alvíssaras, capitão, Meu capitão general! Já vejo terras de Espanha, Areias de Portugal!" Mais enxergo três meninas, Debaixo de um laranjal: Uma sentada a coser, Outra na roca a fiar, A mais formosa de todas Está no