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A mostrar mensagens de fevereiro, 2007
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Mar Mar, metade da minha alma é feita de maresia Pois é pela mesma inquietação e nostalgia, Que há no vasto clamor da maré cheia, Que nunca nenhum bem me satisfez. E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia Mais fortes se levantam outra vez, Que após cada queda caminho para a vida, Por uma nova ilusão entontecida. E se vou dizendo aos astros o meu mal É porque também tu revoltado e teatral Fazes soar a tua dor pelas alturas. E se antes de tudo odeio e fujo O que é impuro, profano e sujo, É só porque as tuas ondas são puras. Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia I
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Pietà Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado, Da pedra e da tristeza, no teu canto, Comigo ao colo, morto e nu, gelado, Embrulhado nas dobras do teu manto. Sobre o golpe sem fundo do meu lado Ia caindo o rio do teu pranto; E o meu corpo pasmava, amortalhado, De um rio amargo que adoçava tanto. Depois, a noite de uma outra vida Veio descendo lenta, apetecida Pela terra-polar de que me fiz; Mas o teu pranto, pela noite além, Seiva do mundo, ia caindo, Mãe, Na sepultura fria da raiz. Lisboa, Cadeia do Aljube, Natal de 1939 - Como se fosse ainda em S. Pedro de Roma. Miguel Torga

O andaime

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O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado! Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão. Este seu correr vazio Figura, anónimo e frio, A vida vivida em vão. A sprança que pouco alcança! Que desejo vale o ensejo? E uma bola de criança Sobre mais que minha sprança, Rola mais que o meu desejo. Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam - verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer. Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou. A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha: Despiu-se, e o reino acabou. Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas! Que sonhos o sonho e a vida! Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido. Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido. Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças, Mas as mortas esperanças
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Os olhos do poeta O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo, e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem. Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas, e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria, com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento. Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos, e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas e corr
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Ambiciosa Para aqueles fantasmas que passaram, Vagabundos a quem jurei amar, Nunca os meus braços lânguidos traçaram O voo dum gesto para os alcançar... Se as minhas mãos em garra se cravaram Sobre um amor em sangue a palpitar... - Quantas panteras bárbaras mataram Só pelo raro gosto de matar! Minha alma é como a pedra funerária Erguida na montanha solitária Interrogando a vibração dos céus! O amor dum homem? - Terra tão pisada, Gota de chuva ao vento baloiçada... Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!... Florbela Espanca, Charneca em Flor (1930)
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Romance do terceiro oficial de finanças Ah! as coisas incríveis que eu te contava assim misturadas com luas e estrelas e a voz vagarosa como o andar da noite! As coisas incríveis que eu te contava e me deixavam hirto de surpresa na solidão da vila quieta!... Que eu vinha alta noite como quem vem de longe e sabe o segredo dos grandes silêncios - os meus braços no jeito de pedir e os meus olhos pedindo o corpo que tu mal debruçavas da varanda!... (As coisas incríveis eu só as contava depois de as ouvir do teu corpo, da noite e da estrela, por cima dos teus cabelos. Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos quando eu ia namorar-te...) Mas tudo isso, que era tudo para nós, não era nada da vida!... Da vida é isto que a vida faz. Ah! sim, isto que a vida faz!... - isto de tu seres a esposa séria e triste de um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!... Manuel da Fonseca
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Já Bocage não sou!... À cova escura Já Bocage não sou!... À cova escura Meu astro vai parar desfeito em vento... Eu aos céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse pura! Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria: Outro Aretino fui... A santidade Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia, Rasga meus versos, crê na eternidade! Bocage
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Desde a aurora Como um sol de polpa escura para levar à boca, eis as mãos: procuram-te desde o chão, entre os veios do sono e da memória procuram-te: à vertigem do ar abrem as portas: vai entrar o vento ou o violento aroma de uma candeia, e subitamente a ferida recomeça a sangrar: é tempo de colher: a noite iluminou-se bago a bago:vais surgir para beber de um trago como um grito contra o muro. Sou eu,desde a aurora, eu-a terra-que te procuro. de Obscuro Domínio Eugénio de Andrade
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Dizem que a paixão o conheceu dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros senta-se no estremecer da noite enumera o que lhe sobejou do adolescente rosto turvo pela ligeira náusea da velhice conhece a solidão de quem permanece acordado quase sempre estendido ao lado do sono pressente o suave esvoaçar da idade ergue-se para o espelho que lhe devolve um sorriso tamanho do medo dizem que vive na transparência do sonho à beira-mar envelheceu vagarosamente sem que nenhuma ternura nenhuma alegria nunhum ofício cantante o tenha convencido a permanecer entre os vivos Al Berto
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Madrigal Toda a manhã fui a flor impaciente por abrir. Toda a manhã fui ardor do sol no teu telhado. Toda a manhã fui ave inquieta no teu jardim. Toda a manhã fui ave ou sol ou flor secretamente ao pé de ti. Eugénio de Andrade
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Adeus, Lisboa Vou-me até à Outra Banda no barquinho da carreira. Faz que anda mas não anda; parece de brincadeira. Planta-se o homem no leme. Tudo ginga, range e treme. Bufa o vapor na caldeira. Um menino solta um grito; assustou-se com o apito do barquinho da carreira. Todo ancho, tremelica como um boneco de corda. Nem sei se vai ou se fica. Só se vê que tremelica e oscila de borda a borda. Chapas de sol, coruscantes como lâminas de espadas, fendem as águas rolantes esparrinhando flamejantes lantejoulas nacaradas. Sob o dourado chuveiro, o barquinho terno e mole, vai-se afastando, ronceiro, na peugada do Sol. A cada volta das pás moendo as águas vizinhas, nos remoinhos que faz, nos salpicos que me traz e me enchem de camarinhas, há fagulhas rutilantes, esquírolas de marcassites, polimentos de pirites, clivagens de diamantes, Numa hipnose coletiva, como um friso de embruxados, ao longe os olhos cravados em transe de expectativa, todos juntos, na amurada, numa sonolência de ópio, vemos,
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Me gustas cuando callas porque estás como ausente, y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca. Parece que los ojos se te hubieran volado y parece que un beso te cerrara la boca. Como todas las cosas están llenas de mi alma emerges de las cosas, llena del alma mía. Mariposa de sueño, te pareces a mi alma, y te pareces a la palabra melancolía. Me gustas cuando callas y estás como distante. Y estás como quejándote, mariposa en arrullo. Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza: déjame que me calle con el silencio tuyo. Déjame que te hable también con tu silencio claro como una lámpara, simple como un anillo. Eres como la noche, callada y constelada. Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo. Me gustas cuando callas porque estás como ausente. Distante y dolorosa como si hubieras muerto. Una palabra entonces, una sonrisa bastan. Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto. Pablo Neruda

Se perguntarem: das artes do mundo?

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Se perguntarem: das artes do mundo? Das artes do mundo escolho a de ver cometas despenharem-se nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos, charcos entre elas. Quero na escuridão revolvida pelas luzes ganhar baptismo, ofício. Queimado nas orlas de fogo das poças. O meu nome é esse. E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites caem dentro dos dias - e eu estudo astros desmoronados, mananciais, o segredo. Herberto Helder

Os paraísos artificiais

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Na minha terra, não há terra, há ruas; mesmo as colinas são de prédios altos com renda muito mais alta. Na minha terra, não há árvores nem flores. As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês, e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores. O cântico das aves — não há cânticos, mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º. E a música do vento é frio nos pardieiros. Na minha terra, porém, não há pardieiros, que são todos na Pérsia ou na China, ou em países inefáveis. A minha terra não é inefável. A vida na minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito. Jorge de Sena

Claridade

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Claridade Clareou. Vieram pombas e sol, e, de mistura com Sonho, pousou tudo num telhado... (Eu, destas grades, a ver, desconfiado.) Depois, uma rapariga loira, (era loira) num mirante estendeu roupa num cordel: Roupa branca, remendada, que se via que era de gente lavada, e só por isso aquecia... E não foi preciso mais: Logo a alma clareou por sua vez. Logo o coração parado bateu a grande pancada da vida com sol e pombas e roupa branca, lavada. Miguel Torga Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Fevereiro de 1940

Navios-fantasmas

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Navios-fantasmas O arabesco fantástico do fumo Do meu cigarro traça o que disseste, A azul, no ar, e o que me escreveste, E tudo o que sonhastes e eu presumo. Para a minha alma estática e sem rumo, A lembrança de tudo o que me deste Passa como o navio que perdestes, No arabesco fantástico do fumo... Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros, Têm o brilho rutilante de astros, Navios-fantasmas, perdem-se a distância! Vão-me buscar, sem mastros e sem velas, Noiva-menina, a doidas caravelas, Ao ignoto País da minha infância... Florbela Espanca Poetisa do simbolismo

Abismo

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Olho o Tejo, e de tal arte Que me esquece olhar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando — O que é sério, e correr? O que é está-lo eu a ver? Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco — Mesmo o meu estar a pensar. Tudo — eu e o mundo em redor — Fica mais que exterior. Perde tudo o ser, ficar, E do pensar se me some. Fico sem poder ligar Ser, idéia, alma de nome A mim, à terra e aos céus... E súbito encontro Deus. Fernando Pessoa

Queixa das almas jovens censuradas

Queixa das almas jovens censuradas Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco Dão-nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o c

Mulheres correndo, correndo pela noite

Mulheres correndo, correndo pela noite. O som de mulheres correndo, lembradas, correndo como éguas abertas, como sonoras corredoras magnólias. Mulheres pela noite dentro levando nas patas grandiosos lenços brancos. Correndo com lenços muito vivos nas patas pela noite dentro. Lenços vivos com suas patas abertas como magnólias correndo, lembradas, patas pela noite viva. Levando, lembrando, correndo. É o som delas batendo como estrelas nas portas. O céu por cima, as crinas negras batendo: é o som delas. Lembradas, correndo. Estrelas. Eu ouço: passam, lembrando. As grandiosas patas brancas abertas no som, à porta, com o céu lembrando. Crinas correndo pela noite, lenços vivos batendo como magnólias levadas pela noite, abertas, correndo, lembrando. De repente, as letras. O rosto sufocado como se fosse abril num canto da noite. O rosto no meio das letras, sufocado a um canto, de repente. Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços sufocados, lembrando letras, levando lenços, letras - nas

Laranja, peso, potência

Laranja, peso, potência. Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância. A matéria pensa. As madeiras incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar, tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja recebe soberania. E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça. A ferida que a gente é: de mundo e invenção. Laranja assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa inocência da terra. Herberto Helder