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A mostrar mensagens de março, 2005
Carlos Tê / Rui Veloso Andava eu na quarta classe e fiz uma redacção Sobre o que eu queria ser um dia quando crescesse Quero ser um marinheiro, sulcar o azul do mar Vaguear de porto em porto até um dia me cansar Quero ser um saltimbanco, saber truques e cantigas Ser um dos que sobe ao palco e encanta as raparigas A sessôra chamou-me ao palco e deixou-me descomposto Ó menino atolombado, que gracinha de mau gosto Lá fiz outra redacção, quero ser um funcionário Ser zeloso ter patrão, deitar cedo e ter horário Ser um barquinho apagado sem prazer em navegar Humilde e bem comportado sem fazer ondas no mar A sessôra bateu palmas e deu-me muitos louvores Apontou-me como exemplo e passou-me com quinze valores
o dia de amanhã Um dia encontrarei uma porta no caminho que se abrirá com estrondo, apesar de eu não sonhar ser um cavaleiro andante nem andar pela noite escura. Provavelmente não será a porta de nenhum palácio. Não terá história essa porta. Talvez possa descansar da viagem da vida diante dessa porta talvez parar um pouco depois de todos os passos tantos caminhos os percorridos e os não percorridos. Aí, em face da possibilidade de todas as possibilidades próprias do que é desconhecido o corpo regenerará. uma nova vitalidade embriagará o corpo mutilado de tempo. Diante dessa porta talvez o corpo receba um futuro perante a hipótese de escolha talvez o homem que então for eu seja verdadeiramente talvez um dia quando descansar em frente a uma porta que se abre para o dia de amanhã. Pedro de Mendoza
Poema do fecho-éclair Filipe II tinha um colar de oiro, tinha um colar de oiro com pedras rubis. Cingia a cintura com cinto de oiro, com fivela de oiro, olho de perdiz. Comia num prato de prata lavrada girafa trufada, rissóis de serpente. O copo era um gomo que em flor desabrocha, de cristal de rocha do mais transparente. Andava nas salas forradas de Arrás, com panos por cima, pela frente e por trás. Tapetes flamengos, combates de galos, alões e podengos, falcões e cavalos. Dormia na cama de prata maciça com dossel de lhama de franja roliça. Na mesa do canto vermelho damasco, e a tíbia de um santo guardada num frasco. Foi dono da Terra, foi senhor do Mundo, nada lhe faltava, Filipe Segundo. Tinha oiro e prata, pedras nunca vistas, safiras, topázios, rubis, ametistas. Tinha tudo, tudo, sem peso nem conta, bragas de veludo, peliças de lontra. Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho-éclair. António Gedeão , Poesias completas
Na idade dos porquês Professor diz-me porquê? Por que voa o papagaio que solto no ar que vejo voar tão alto no vento que o meu pensamento não pode alcançar? Professor diz-me porquê? Por que roda o meu pião? Ele não tem nenhuma roda E roda gira rodopia e cai morto no chão... Tenho nove anos professor e há tanto mistério à minha roda que eu queria desvendar! Por que é que o céu é azul? Por que é que marulha o mar? Porquê? Tanto porquê que eu queria saber! E tu que não me queres responder! Tu falas falas professor daquilo que te interessa e que a mim não interessa. Tu obrigas-me a ouvir quando eu quero falar. Obrigas-me a dizer quando eu quero escutar. Se eu vou a descobrir Fazes-me decorar. É a luta professor a luta em vez de amor. Eu sou uma criança. Tu és mais alto mais forte mais poderoso. E a minha lança quebra-se de encontro à tua muralha. Mas enquanto a tua voz zangada ralha tu sabes professor eu fecho-me por dentro faço uma cara resignada e finjo finjo que não penso em nada. Mas p
O Palácio da Ventura Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura! Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formusura! Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais! Antero de Quental
Poema à mãe No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe! Tudo porque já não sou o retrato adormecido no fundo dos teus olhos! Tudo porque tu ignoras que há leitos onde o frio não se demora e noites rumorosas de águas matinais! Por isso, às vezes, as palavras que te digo são duras, mãe, e o nosso amor é infeliz. Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração no retrato da moldura! Se soubesses como ainda amo as rosas, talvez não enchesses as horas de pesadelos... Mas tu esqueceste muita coisa! Esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu, e até o meu coração ficou enorme, mãe! Olha - queres ouvir-me? -, às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos; ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura; ainda oiço a tua voz: "Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal..." Mas - tu sabes! - a noite é enorme e todo o meu corpo cresceu... Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber. N