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A mostrar mensagens de janeiro, 2005
Fernando Pessoa Teu canto justo que desdenha as sombras Limpo de vida viúvo de pessoa Teu corajoso ousar não ser ninguém Tua navegação com bússola e sem astros No mar indefinido Teu exacto conhecimento impossessivo. Criaram teu poema arquitectura E és semelhante a um deus de quatro rostos E és semelhante a um deus de muitos nomes Cariátide de ausência isento de destinos Invocando a presença já perdida E dizendo sobre a fuga dos caminhos Que foste como as ervas não colhidas. Sophia de Mello Breyner Andresen
Poema da auto-estrada Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina, de impaciente nervura. como guache lustroso, amarelo de idantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta: Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa e bem segura. Com um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta, lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe Leonor se o que lhe chega aos ouvidos são ec
Aos Poetas Somos nós As humanas cigarras! Nós, Desde os tempos de Esopo conhecidos. Nós, Preguiçosos insectos perseguidos. Somos nós os ridículos comparsas Da fábula burguesa da formiga. Nós, a tribo faminta de ciganos Que se abriga Ao luar. Nós, que nunca passamos A passar!... Somos nós, e só nós podemos ter Asas sonoras, Asas que em certas horas Palpitam, Asas que morrem, mas que ressuscitam Da sepultura! E que da planura Da seara Erguem a um campo de maior altura A mão que só altura semeara. Por isso a vós, Poetas, eu levanto A taça fraternal deste meu canto, E bebo em vossa honra o doce vinho Da amizade e da paz! Vinho que não é meu, mas sim do mosto que a beleza traz! E vos digo e conjuro que canteis! Que sejais menestreis De uma gesta de amor universal! Duma epopeia que não tenha reis, Mas homens de tamanho natural! Homens de toda a terra sem fronteiras! De todos os feitios e maneiras, Da cor que o sol lhes deu à flor da pele! Crias de Ad
Pedra filosofal Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso, em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos, que em oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho alacre e sedento, de focinho pontiagudo, que foça através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa dos ventos, Infante, caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cis
Os paraísos artificiais Na minha terra, não há terra, há ruas; mesmo as colinas são de prédios altos com renda muito mais alta. Na minha terra, não há árvores nem flores. As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês, e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores. O cântico das aves ? não há cânticos, mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º. E a música do vento é frio nos pardieiros. Na minha terra, porém, não há pardieiros, que são todos na Pérsia ou na China, ou em países inefáveis. A minha terra não é inefável. A vida na minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito. Jorge de Sena
Nirvana Para além do Universo luminoso, Cheio de formas, de rumor, de lida, De forças, de desejos e de vida, Abre-se como um vácuo tenebroso. A onda desse mar tumultuoso Vem ali expirar, esmaecida... Numa imobilidade indefinida termina ali o ser, inerte, ocioso... E quando o pensamento, assim absorto, emerge a custo desse mundo morto E torna a olhar as coisas naturais, À bela luz da vida, ampla, infinita, Só vê com tédio, em tudo quanto fita, A ilusão e o vazio universais. Antero de Quental
O Palácio da Ventura Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura! Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formusura! Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais! Antero de Quental
Visita Adornou o meu quarto a flor do cardo, Perfumei-o de amílscar rescendente; Vesti-me com a púrpura fulgente, Ensaiando meus cantos como um bardo. Ungi as mãos e a face com o nardo Crescido nos jardins do Oriente, A receber com pompa, dignamente, misteriosa visita a quem aguardo. Mas que filha de reis, que anjo ou que fada Era essa que assim a mim descia, Do meu casebre à húmida pousada? Nem princesas, nem fadas. Era, flor, era a tua lembrança que batia Às portas de ouro e luz do meu amor! Antero de Quental
Nau Catrineta Lá vem a Nau Catrineta Que tem muito que contar! Ouvide agora, senhores, Uma história de pasmar. Passava mais de ano e dia Que iam na volta do mar, Já não tinham que comer, Já não tinham que manjar. Deitaram sola de molho Para o outro dia jantar; Mas a sola era tão rija, Que a não puderam tragar. Deitaram sortes à ventura Qual se havia de matar; Logo foi cair a sorte No capitão general. - "Sobe, sobe, marujinho, Àquele mastro real, Vê se vês terras de Espanha, As praias de Portugal!" - "Não vejo terras de Espanha, Nem praias de Portugal; Vejo sete espadas nuas Que estão para te matar." - "Acima, acima, gageiro, Acima ao tope real! Olha se enxergas Espanha, Areias de Portugal!" - "Alvíssaras, capitão, Meu capitão general! Já vejo terras de Espanha, Areias de Portugal!" Mais enxergo três meninas, Debaixo de um laranjal: Uma sentada a coser, Outra na roca a fiar, A mais formosa de todas Está no