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A mostrar mensagens de fevereiro, 2004
Balança No prato da balança um verso basta para pesar no outro a minha vida. Eugénio de Andrade
Sobre Flancos e Barcos Havia ainda outro jardim o da minha vida exíguo é certo mas o do meu olhar são talvez dois pássaros que se amam um sobre o outro ou dois cães de pé é sempre a mesma inquietação este delírio branco ou o rumor da chuva sobre flancos e barcos o inverno vai chegar sobre a palha ainda quente a mão uma doçura de abelha muito jovem era o sopro distante das manhãs sobre o mar e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração é o silêncio é por fim o silêncio vai desabar Eugénio de Andrade
Insomnia Não durmo, nem espero dormir. Nem na morte espero dormir. Espera-me uma insomnia da largura dos astros, E um bocejo inutil do comprimento do mundo. Não durmo; não posso ler quando accordo de noite, Não posso escrever quando accordo de noite, Não posso pensar quando accordo de noite – Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite! Ah, o opio de ser outra pessoa qualquer! Não durmo, jazo, cadaver accordado, sentindo, E o meu sentimento é um pensamento vazio. Passam por mim, transtornadas, coisas que me succederam – Todas aquellas de que me arrependo e me culpo –; Passam por mim, transtornadas, coisas que me não succederam – Todas aquellas de que me arrependo e me culpo –; Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada, E até d'essas me arrependo, me culpo, e não durmo. Não tenho força para ter energia para accender um cigarro. Fito a parede fronteira do quarto como se fôsse o universo. Lá
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A alcova Desce não sei por onde Até não me encontrar. Ascende um leve fumo Das minhas sensações. Deixo de me incluir Dentro de mim. Não há Cá-dentro nem lá-fora. E o deserto está agora Virado para baixo. A noção de mover-me Esqueceu-se do meu nome. Na alma meu corpo pesa-me. Sinto-me um reposteiro Pendurado na sala Onde jaz alguém morto. Qualquer coisa caiu
Cogito eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranqüilamente todas as horas do fim. Torquato Neto
Podres poderes Enquanto os homens exercem seus podres poderes Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos E perdem os verdes Somos uns boçais Queria querer gritar setecentas mil vezes Como são lindas, como são lindos os burgueses Os japoneses Mas tudo ‚ muito mais Ser que nunca faremos senão confirmar A incompetência da América Católica Que sempre precisar de ridículos tiranos Ser , ser que, ser que, ser que ser Ser que essa minha estúpida retórica Ter que soar, ter que se ouvir Por mais mil anos? Enquanto os homens exercem seus podres poderes Índios, padres e bichas, negros e mulheres E adolescentes Fazem o carnaval Queria querer cantar afinado como eles Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase Ser indecente Mas tudo ‚ muito mal Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice For jorrar sangue demais Nos pantanais, nas cidades, catingas E nos gerais Ser que apenas os hermetismos pascoais E os tons e os mil tons, seus son
VENDAVAL Ó vento do norte, tão fundo e tão frio, Não achas, soprando por tanta solidão, Deserto, penhasco, coval mais vazio Que o meu coração! Indômita praia, que a raiva do oceano Faz louco lugar, caverna sem fim, Não são tão deixados do alegre e do humano Como a alma que há em mim! Mas dura planície, praia atra em fereza, Só têm a tristeza que a gente lhes vê E nisto que em mim é vácuo e tristeza É o visto o que vê. Ah, mágoa de ter consciência da vida! Tu, vento do norte, teimoso, iracundo, Que rasgas os robles - teu pulso divida Minh'alma do mundo! Ah, se, como levas as folhas e a areia, A alma que tenho pudesses levar - Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia De eu ter que pensar! Abismo da noite, da chuva, do vento, Mar torvo do caos que parece volver - Porque é que não entras no meu pensamento Para ele morrer? Horror de ser sempre com vida a consciência! Horror de sentir a alma sempre a pensar! Arranca-me, é vento; do chão da
O MOSTRENGO O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; A roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo: «El-Rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso. «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse: «El-Rei D. João Segundo!» Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!»
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Todas as cartas de amor são ridículas Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor, Têm de ser Ridículas. Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas. Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso Cartas de amor Ridículas. A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor É que são Ridículas. (Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas.) 21-10-1935
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Lenta, Descansa Lenta, descansa a onda que a maré deixa. Pesada cede. Tudo é sossegado. Só o que é de homem se ouve. Cresce a vinda da lua. Nesta hora, Lídia ou Neera Ou Cloe, Qualquer de vós me é estranha, que me inclino Para o segredo dito Pelo silêncio incerto. Tomo nas mãos, como caveira, ou chave De supérfluo sepulcro, o meu destino, E ignaro o aborreço Sem coração que o sinta. Ricardo Reis
O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso. óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó (O vento lá fora.) 15-1-1928 Alvaro de Campos-Engenheiro Naval
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Concerto dos órgãos Orgasmo, janela do corpo Espasmo da carne Êxtase da alma Libido na palma da mão Cálido tato que nos conduz Pele aberta em flor Órgão executando luz Coração sem pecado original Alvejado em duas fontes Que se molham de amor.... Carlos Lúcio Gontijo
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Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma
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Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perf
Dorme enquanto eu velo... Deixa-me sonhar... Nada em mim é risonho. Quero-te para sonho, Não para te amar. A tua carne calma É fria em meu querer. Os meus desejos são cansaços. Nem quero ter nos braços Meu sonho do teu ser. Dorme, dorme. dorme, Vaga em teu sorrir... Sonho-te tão atento Que o sonho é encantamento E eu sonho sem sentir. Fernando Pessoa