Mensagens

A mostrar mensagens de 2004
Acordar tarde tocas as flores murchas que alguém te ofereceu quando o rio parou de correr e a noite foi tão luminosa quanto a mota que falhou a curva - e o serviço postal não funcionou no dia seguinte procuras ávido aquilo que o mar não devorou e passas a língua na cola dos selos lambidos por assassinos - e a tua mão segurando a faca cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado dos amantes ocasionais - nada a fazer irás sozinho vida dentro os braços estendidos como se entrasses na água o corpo num arco de pedra tenso simulando a casa onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia Al Berto, Horto de Incêndio
Litania para o Natal de 1967 Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto num sótão num porão numa cave inundada Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto dentro de um foguetão reduzido a sucata Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto numa casa de Hanói ontem bombardeada Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto num presépio de lama e de sangue e de cisco Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto para ter amanhã a suspeita que existe Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto tem no ano dois mil a idade de Cristo Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto vê-lo-emos depois de chicote no templo Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto e anda já um terror no látego do vento Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto para nos pedir contas do nosso tempo David Mourão-Ferreira, Lira de bolso
Natal, e não Dezembro Entremos, apressados, friorentos, numa gruta, no bojo de um navio, num presépio, num prédio, num presídio no prédio que amanhã for demolido... Entremos, inseguros, mas entremos. Entremos e depressa, em qualquer sítio, porque esta noite chama-se Dezembro, porque sofremos, porque temos frio. Entremos, dois a dois: somos duzentos, duzentos mil, doze milhões de nada. Procuremos o rastro de uma casa, a cave, a gruta, o sulco de uma nave... Entremos, despojados, mas entremos. De mãos dadas talvez o fogo nasça, talvez seja Natal e não Dezembro, talvez universal a consoada. David Mourão-Ferreira , Cancioneiro de Natal
Saíu Para A Rua Carlos Tê / Rui Veloso Saiu decidida para a rua Com a carteira castanha E o saia-casaco escuro Tantos anos tantas noites Sem sequer uma loucura Ele saiu sem dizer nada Talvez fosse ao teatro chino Vai regressar de madrugada E acordá-la cheio de vinho Tantos anos tantas noites Sem nunca sentir a paixão Foram já as bodas de prata Comemoradas em solidão Pôs um pouco de baton E um leve toque de pintura Tirou do cabelo o travessão E devolveu ao rosto a candura Saiu para a rua insegura Vageou sem direcção Sorriu a um homem com tremura E sentiu escorrer do coração A humidade quente da loucura
À Noite Dissolve os Homens A noite desceu. Que noite! Já não enxergo meus irmãos. E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam. A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate, nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão. A noite caiu. Tremenda, sem esperança... Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros. E o amor não abre caminho na noite. A noite é mortal, completa, sem reticências, a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer, a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes! nas suas fardas. A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... Os suicidas tinham razão. Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender e dos bens que repartirás com todos os homens. Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações, adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna. O triste mundo fascista se de
Pombo-Correio Os garotos da Rua Noel Rosa onde um talo de samba viça no calçamento, viram o pombo-correio cansado confuso aproximar-se em vôo baixo. Tão baixo voava: mais raso que os sonhos municipais de cada um. Seria o Exército em manobras ou simplesmente trazia recados de ai! amor à namorada do tenente em Aldeia Campista? E voando e baixando entrançou-se entre folhas e galhos de fícus: era um papagaio de papel, estrelinha presa, suspiro metade ainda no peito, outra metade no ar. Antes que o ferissem, pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado que o dos homens e o dos homens costuma ser mortal uma senhora o salva tomando-o no berço das mãos e brandamente alisa-lhe a medrosa plumagem azulcinza cinza de fundos neutros de Mondrian azul de abril pensando maio. 3235-58-Brasil dizia o anel na perninha direita. Mensagem não havia nenhuma ou a perdera o mensageiro como se perdem os maiores segredos de Estado que graças a isto se to
Aos que vierem depois de nós Bertolt Brecht (Tradução de Manuel Bandeira) Realmente, vivemos muito sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica silenciar tantos horrores! Esse que cruza tranquilamente a rua não poderá jamais ser encontrado pelos amigos que precisam de ajuda? É certo: ganho o meu pão ainda, Mas acreditai-me: é pura casualidade. Nada do que faço justifica que eu possa comer até fartar-me. Por enquanto as coisas me correm bem [(se a sorte me abandonar estou perdido). E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!" Mas como posso comer e beber, se ao faminto arrebato o que como, se o copo de água falta ao sedento? E todavia continuo comendo e bebendo. Também gostaria de ser um sábio. Os livros antigos nos falam da sabedoria: é
La bastille Mon ami, qui croit que tout doit changer Crois-tu le droit d'aller tuer les bourgeois Si tu crois encore qu'il nous faut descendre Dans le creux des rues pour monter au pouvoir Si tu crois encore au rêve du grand soir Et que nos ennemis, il faut aller les pendre Dis-le toi désormais Même s'il est sincère Aucun rêve jamais Ne mérite une guerre On a détruit la Bastille Et ça n'a rien arrangé On a détruit la Bastille Quand il fallait nous aimer Mon ami, qui croit, que rien ne doit changer Te crois-tu le droit de vivre et de penser en bourgeois Si tu crois encore qu'il nous faut défendre Un bonheur acquis au prix d'autres bonheurs Si tu crois encore que c'est parce qu'ils ont tort Que les gens te saluent plutôt que de te pendre Dis-le toi désormais Même s'il est sincère Aucun rêve jamais Ne mérite une guerre On a détruit la Bastille Et ça n'a rien arrangé On a détruit la Bastille Quand il fallait nous
Acordar tarde Tocas as flores murchas que alguém te ofereceu quando o rio parou de correr e a noite foi tão luminosa quanto a mota que falhou a curva - e o serviço postal não funcionou no dia seguinte procuras ávido aquilo que o mar não devorou e passas a língua na cola dos selos lambidos por assassinos - e a tua mão segurando a faca cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado dos amantes ocasionais - nada a fazer irás sozinho vida dentro os braços estendidos como se entrasses na água o corpo num arco de pedra tenso simulando a casa onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia Al Berto
Não: não digas nada! Supor o que dirá A tua boca velada É ouvi-lo já É ouvi-lo melhor Do que o dirias. O que és não vem à flor Das frases e dos dias. És melhor do que tu. Não digas nada: sê! Graça do corpo nu Que invisível se vê. Fernando Pessoa 5/6-2-1931
A bunda que engraçada A bunda, que engraçada. Está sempre sorrindo, nunca é trágica. Não lhe importa o que vai pela frente do corpo. A bunda basta-se. Existe algo mais? Talvez os seios. Ora ? murmura a bunda ? esses garotos ainda lhes falta muito que estudar. A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio. Anda por si na cadência mimosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente. A bunda se diverte por conta própria. E ama. Na cama agita-se. Montanhas avolumam-se, descem. Ondas batendo numa praia infinita. Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz na carícia de ser e balançar. Esferas harmoniosas sobre o caos. A bunda é a bunda, rebunda. Carlos Drummond de Andrade
Língua portuguesa Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, em que da voz materna ouvi: "meu filho!", E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! Olavo Bilac
Pequenas considerações sobre o futuro das coisas Uma ponta de lápis que se cravou na minha mão os pássaros que voam para sul no Inverno. O nosso Inverno que é Verão do lado de lá do mundo os oceanos que compõem a maior parte da Terra. a vida das árvores a mulher o feto ainda incógnito que nasce no útero as estrelas que vemos no céu depois de mortas. O que é Eterno o pó que os nossos passos levantam as memórias a História os Homens uma pegada na lua o fundo do mar um soneto de Antero o meu irmão as ondas inesgotáveis que me fazem respirar a voz de Jacques Brel cantando Les Marquises. Os cabelos de uma mulher contornando-lhe o pescoço. A musica que ecoa do contacto das coisas. O fumo de um cigarro o contacto da tua pele na minha as mãos um golo num copo e um mundo líquido a incerteza dos dias e a minha morte no futuro os livros que li os que não li as palavras que não pude escrever aqui as mares por influência da lua e a vida por influência do sol e
composto por Bernardo Soares , ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (Fragmentos) 10. "Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados."
poema de haver erro em dia novo abriu os dedos ao devir da palavra como num rolo enxugou as tintas frescas da parede lamentando ter perdido a cedilha do tempo. eram 10 horas. errava ainda a par da primavera, o outono chiando, num descanso taciturno, atrapalhou-se com os minutos, enfiados nas algibeirase foi-se o dia começava amanhã novo não chegara ainda o tempo das vírgulas. Morreu num poema de haver erro em dia novo enquanto tentava atravessar o ( livro ) de ponto. Mariana Matos
A mulher que passa Meu Deus, eu quero a mulher que passa. Seu dorso frio é um campo de lírios Tem sete cores nos seus cabelos Sete esperanças na boca fresca! Oh! Como és linda, mulher que passas Que me sacias e suplicias Dentro das noites, dentro dos dias! Teus sentimentos são poesia Teus sofrimentos, melancolia. Teus pêlos são relva boa Fresca e macia. Teus belos braços são cisnes mansos Longe das vozes da ventania. Meu Deus, eu quero a mulher que passa! Como te adoro, mulher que passas Que vens e passas, que me sacias Dentro das noites, dentro dos dias! Por que me faltas, se te procuro? Por que me odeias quando te juro Que te perdia se me encontravas E me encontravas se te perdias? Por que não voltas, mulher que passas? Por que não enches a minha vida? Por que não voltas, mulher querida Sempre perdida, nunca encontrada? Por que não voltas à minha vida Para o que sofro não ser desgraça? Meu Deus, eu quero a mulher q
Não Há Estrelas No Céu Carlos Tê / Rui Veloso Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho, Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho. De que vale ter a chave de casa para entrar, Ter uma nota no bolso pr'a cigarros e bilhar? A primavera da vida é bonita de viver, Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover. Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar, Parece que o mundo inteiro se uniu pr'a me tramar! Passo horas no café, sem saber para onde ir, Tudo à volta é tão feio, só me apetece fugir. Vejo-me à noite ao espelho, o corpo sempre a mudar, De manhã ouço o conselho que o velho tem pr'a me dar. Vou por aí às escondidas, a espreitar às janelas, Perdido nas avenidas e achado nas vielas. Mãe, o meu primeiro amor foi um trapézio sem rede, Sai da frente por favor, estou entre a espada e a parede. Não vês como isto é duro, ser jovem não é um posto, Ter de encarar o futuro com borbulhas no rosto. Porque é que tudo é inc
Saudade em Barcos Pretos Relembra-me o toque dos teus passos no soalho da nossa casa. Talvez esta saudade doesse menos; Talvez a porta se voltasse a abrir e Fosses (mesmo que apenas) Um viajante, um hóspede, um amigo, a quem, Pudesse contar os meus segredos. Relembra-me o som da tua voz ao telefone A desejar-me os bons anos. Os parabéns. O Feliz Natal. Talvez a tua ausência desaparecesse. Talvez a minha solidão diminuísse. Relembra-me a cor do mar pelos teus olhos, Os barcos, as cidades, As pessoas, Relembra-me os passeios, as lagoas, os portos de chegada O teu abraço. Relembra-me a vida como era, Talvez eu pudesse escrevê-la e mudá-la: - Partidas e viagens nunca ausentes, A solidão trocada por encontro. E tudo era feliz. Claro e constante. Não mais partidas vãs que só desgraçam A dor, que vem pelo dorso da minh´alma. Não mais Morrer-me a mim em cada instante, Levando-me a saudade em barcos pretos, A todos os portos que conheceste. Mariana Ma
O Menino da sua Mãe No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas traspassado ? Duas, de lado a lado ?, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! Que jovem era! (Agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: «O menino da sua mãe». Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lhe a mãe. Está inteira É boa a cigarreira, Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço... Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: "Que volte cedo, e bem!" (Malhas que o Império tece!) Jaz morto, e apodrece, O menino da sua mãe. Fernando Pessoa
«Trova do Vento que Passa» Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folh
Para o João Henrique Magalhães AMIGOS!Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles. A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objeto dela se divida em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade. E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências? A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar. Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos. Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro,
A Sílaba Toda a manhã procurei uma sílaba. É pouca coisa,é certo:uma vogal, uma consoante,quase nada. Mas faz-me falta.Só eu sei a falta que me faz. Por isso a procurava com obstinação. Só ela me podia defender do frio de janeiro,da estiagem do verão.Uma sílaba. Uma única sílaba. A salvação. de Ofício de Paciência Eugénio de Andrade
A Funda Arranquei à pele do peito, com os dedos ensangüentados, um retângulo perfeito de cem centímetros quadrados. Estendi-o ao sol a curtir a haurir uns raios que projetam certo incógnito elixir que os detectares não detectam. Depois de bem seco e rijo prendi-lhe, nos quatros cantos, quatro nervos desses tantos com que me franjo e me aflijo. Eis-me de funda na mão no mais ereto dos montes, devassando os horizontes com os pés bem presos no chão, as pernas em ângulo agudo para assentar com firmeza nessa dúvida de tudo tão certa como a certeza. Só, entre os fundibulários, no centro dos meus domínios, como o pastor dos Hermínios na defesa dos contrários, ponho na funda um poema de agrestes arestas vivas, e em rotações sucessivas de celeridade extrema, com todo o vigor do braço, como o vento em torvelinho, lanço o poema no espaço no seu exato caminho. António Gedeão
Take This Waltz Now in Vienna there's ten pretty women There's a shoulder where Death comes to cry There's a lobby with nine hundred windows There's a tree where the doves go to die There's a piece that was torn from the morning And it hangs in the Gallery of Frost Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take this waltz with the clamp on its jaws Oh I want you, I want you, I want you On a chair with a dead magazine In the cave at the tip of the lily In some hallways where love's never been On a bed where the moon has been sweating In a cry filled with footsteps and sand Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take its broken waist in your hand This waltz, this waltz, this waltz, this waltz With its very own breath of brandy and Death Dragging its tail in the sea There's a concert hall in Vienna Where your mouth had a thousand reviews There's a bar where the boys have stopped talking
Um poema para o dia de ontem Rosa de Hiroshima Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexactas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh! não se esqueçam Da rosa, da rosa Da rosa de Hiroshima Rosa hereditária A rosa radioactiva Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atómica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. Vínicos de Morais
Ecce Homo Desbaratamos deuses, procurando Um que nos satisfaça ou justifique. Desbaratamos esperança, imaginando Uma causa maior que nos explique. Pensando nos secamos e perdemos Esta força selvagem e secreta, Esta semente agreste que trazemos E gera heróis e homens e poetas. Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo Malhando-nos a carne, até que em brasa Nossos sexos furiosos se confundam, Nossos corpos pensantes se entrelacem E sangue, raiva, desespero ou asa, Os filhos que tivermos forem nossos. José Carlos Ary dos Santos
Ecloga Sonhei contigo embora nenhum sonho possa ter habitantes, tu a quem chamo amor, cada ano pudesse trazer um pouco mais de convicção a esta palavra. É verdade o sonho poderá ter feito com que, nesta rarefacção de ambos, a tua presença se impusesse - como se cada gesto do poema te restituísse um corpo que sinto ao dizer o teu nome, confundindo os teus lábios com o rebordo desta chávena de café já frio. Então, bebo-o de um trago o mesmo se pode fazer ao amor, quando entre mim e ti se instalou todo este espaço - terra, água, nuvens, rios e o lago obscuro do tempo que o inverno rouba à transparência da fontes. É isto, porém, que faz com que a solidão não seja mais do que um lugar comum saber que existes, aí, e estar contigo mesmo que só o silêncio me responda quando, uma vez mais te chamo. Nuno Júdice
A Boneca   Deixando a bola e a peteca  Com que inda há pouco brincavam, Por causa de uma boneca, Duas meninas brigavam.   Dizia a primeira: "É minha!" ? "É minha!" a outra gritava; E nenhuma se continha, Nem a boneca largava.   Quem mais sofria (coitada!) Era a boneca. Já tinha Toda a roupa estraçalhada,  E amarrotada a carinha.   Tanto puxaram por ela, Que a pobre rasgou-se ao meio, Perdendo a estopa amarela Que lhe formava o recheio.   E, ao fim de tanta fadiga, oltando à bola e à peteca, Ambas, por causa da briga, Ficaram sem a boneca...   Olavo Bilac
O sol já se escondeu O sol já se escondeu... Precisamente quando, feliz, eu desatei a cantar. (Só por feliz eu cantei). Agora quero acabar, que já me dói a garganta, mas vou ainda cantando, tremendo dar por mim de novo triste assim que esteja calado. (...Como se a minha Alegria nascesse de eu ter cantado). Sebastião da Gama
SONETO DO CATIVO Se é sem dúvida Amor esta explosão de tantas sensações contraditórias; a sórdida mistura das memórias tão longe da verdade e da invenção; o espelho deformante; a profusão de frases insensatas, incensórias; a cúmplice partilha nas histórias do que outros dirão ou não dirão; se é sem dúvida Amor a cobardia de buscar nos lençóis a mais sombria razão de encantamento e de desprezo; não há dúvida, Amor, que te não fujo e que, por ti, tão cego, surdo e sujo, tenho vivido eternamente preso! David Mourão Ferreira, in Os Quatro Cantos do Tempo
Imagem
O que é que eu posso dizer sobre o desaparecimento desta grande Senhora? Nada. Para para além do que ela própria foi dizendo ao longo da sua obra. "A hora da partida soa quando As árvores parecem inspiradas Como se tudo nelas germinasse"
De Volta ao Carlos Tê e ao Rui Veloso Trovas Vicentinas Vós que vos ides por ganância Debaixo da capa do cruzado Buscando no incerto e na distância A mina delirante do el dourado Vós que deixais só na rectaguarda Um farto giniceu desamparado Não sentis testa que vos arda Durante o sono repousate do soldado Ouvi este lado trovador Por feitos de além - mar pouco tentado Não se deixa uma esposa sem amor Com o trevo da mocidade eriçado E vê-las no poleiro das janelas Gastando seus furores em vãs intrigas É vê-las nas ribeiras com as barrelas Contando oq ue só deus sabe às amigas Quanta malícia mal ardida Tangem seus olhares pelas esquinas Soubesseis os sorrisos de fugida Que delas merecem minhas rimas E vieis que melhor que a riqueza É ter alguém à noite na cama Que o diga a presunçosa e vã nobreza Que goza a especiaria ao pé da dama Por isso se as testas vos ardem No lume verrinoso do adultério Às línguas viperinas que vierem Dizei que ardem
À vida É vão o amor, o ódio, ou o desdém; Inútil o desejo e o sentimento... Lançar um grande amor aos pés de alguém O mesmo é que lançar flores ao vento! Todos somos no mundo "Pedro Sem", Uma alegria é feita dum tormento, Um riso é sempre o eco dum lamento, Sabe-se lá um beijo de onde vem! A mais nobre ilusão morre... desfa-se... Uma saudade morta em nós renasce Que no mesmo momento é já perdida... Amar-te a vida inteira eu não podia, A gente esquece sempre o bom de um dia. Que queres, meu Amor, se é isto a vida! Florbela Espanca
Pedra Filosofal Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso como este ribeiro manso em serenos sobressaltos como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam como estas árvores que gritam em bebedeiras de azul eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento bichinho alacre e sedento de focinho pontiagudo que fuça através de tudo no perpétuo movimento Eles não sabem que o sonho é tela é cor é pincel base, fuste ou capitel arco em ogiva, vitral Pináculo de catedral contraponto, sinfonia máscara grega, magia que é retorta de alquimista mapa do mundo distante Rosa dos Ventos Infante caravela quinhentista que é cabo da Boa-Esperança Ouro, canela, marfim florete de espadachim bastidor, passo de dança Columbina e Arlequim passarola voadora pára-raios, locomotiva barco de proa festiva alto-forno, geradora
Fio de vida Já fiz mais do que podia Nem sei como foi que fiz. Muita vez nem quis a vida a vida foi quem me quis. Para me ter como servo? Para acender um tição na frágua da indiferença? Para abrir um coração no fosso da inteligência? Não sei, nunca vou saber. Sei que de tanto me ter, acabei amando a vida. Vida que anda por um fio, diz quem sabe. Pode andar, contanto (vida é milagre) que bem cumprido o meu fio. Thiago de Mello Para desanuviar do TÊ e do RUI e a pedido de várias familias.
Trovas Vicentinas Carlos Tê / Rui Veloso Vós que vos ides por ganância Debaixo da capa do cruzado Buscando no incerto e na distância A mina delirante do el dourado Vós que deixais só na rectaguarda Um farto giniceu desamparado Não sentis testa que vos arda Durante o sono repousate do soldado Ouvi este lado trovador Por feitos de além - mar pouco tentado Não se deixa uma esposa sem amor Com o trevo da mocidade eriçado E vê-las no poleiro das janelas Gastando seus furores em vãs intrigas É vê-las nas ribeiras com as barrelas Contando oq ue só deus sabe às amigas Quanta malícia mal ardida Tangem seus olhares pelas esquinas Soubesseis os sorrisos de fugida Que delas merecem minhas rimas E vieis que melhor que a riqueza É ter alguém à noite na cama Que o diga a presunçosa e vã nobreza Que goza a especiaria ao pé da dama Por isso se as testas vos ardem No lume verrinoso do adultério Às línguas viperinas que vierem Dizei que ardem pela grandeza do i
Mulher De Armas Carlos Tê / Rui Veloso O meu amor Quando se foi Pela barra desse rio Disse que vinha Mas não veio mais Trocou-me por um navio Ao meu amor Não lhe perdôo Com ele não me ter levado Sou mulher de armas Queria ver mundo Conquistá-lo ao seu lado Aqui estou eu viúva e orfã Meu destino é carpir O dele é nobre Navega e descobre E eu nada tenho a descobrir O meu amor Onde está ele Trocou-me por uma quimera É um mundo de homens A fazer a guerra E de mulheres sempre à espera Ao meu amor Mando lembranças Quando sózinha me deito Queria amar outro Mas partiram todos Não ficou nenhum de jeito Refrão Meu coração Como estás tu Trocado por um convés Vê minhas armas Já se calaram E tu perdeste outra vêz Quando me lembro Como tu eras Mais largo do que esse mar O amor que tinha Dei-o à toa A quem o queria agarrar Refrão
Praia Das Lágrimas Carlos Tê / Rui Veloso Ó mar salgado eu sou só mais uma Das que aqui choram e te salgam a espuma Ó mar das trevas que somes galés Meu pranto intenso engrossa as marés Ó mar da indía lá nos teus confins De chorar tanto tenho dores nos rins Choro nesta areia salina será Choro toda a noite séco de manhã Ai ó mar roxo ó mar abafadiço Poupa o meu homem não lhe dês sumiço Que sol é o teu nesses céus vermelhos Que eles partem novos e retornam velhos Ó mar da calma ninho do tufão Que é do meu amor seis anos já lá vão Não sei o que os chama aos teus nevoeiros Será fortuna ou bichos-carpinteiros Ó mar da china samatra e ceilão Não sei que faça sou viúva ou não Não sei se case notícias não há Será que é morto ou se amigou por lá
Calmaria Carlos Tê / Rui Veloso Foi medonha a tempestade que a agulha quase enlouquecia Era tal o negrume do céu que não havia noite nem dia Já eu pensava na morte fez-se súbita acalmia Que nos deixou à sorte sem vento na maresia Relembrei velhos pilotos relatos destas andanças Piores que certos maremotos às vezes só certas bonanças Reparamos os danos nas velas que o vento havia de chegar Mas foram passando os dias e nós sem nada mais a inventar E era medonha a calmaria Segui o vôo de albatroz fisguei peixe-voador Cantei para ouvir a minha voz recapitulei cada amor Li a noite constelada na folha do firmamento Vi a várzea azul semeada de àguas sem movimento A mando do capitão fizemos procissão Missa e novena cantada pescamos um tubarão E depois de o cegar no convés com ele fizemos tourada Mas do vento de feição é que ninguém sabia de nada E era medonha a calmaria Quase a dez dias de pasmo no alto mar sem aragem Com o sol tisnando a prumo pus fim à minha v
Faena De Mar Carlos Tê / Rui Veloso Fiz-me à estrada de lisboa sem um chavo na algibeira queria aprender um ofício e fazer uma carreira Vindo do ribatejo lá onde o touro se pega Picado pela fome e a fugir da peste negra Ao fim de três semanas vivia de caridade Com a turma de mendigos que pedia pela cidade Ouvi lêr um edital na rua dos tintureiros A pedir gente de brega soldados e marinheiros Pelo soldo pela comida sem medo de ir à aventura Era mesmo essa a vida de que eu vinha à procura Ao passar no cais de alfama vi grandes preparativos Dei o nome ao escrivão e juntei-me aos efectivos Aguenta toureiro ensaia a tua faena O touro é sendeiro e escorrega muito a arena Toureia o destino improvisa a tua finta É sobre o joelho que melhor se tira a pinta Veio o dia da largada ondulavam os pendões Faltava gente à armada tiveram de ir às prisões Arrebanhar voluntários entre a nata da escumalha Rufiões e salafrários grandes barões da navalha Havia choro no c
Cruzeiro Do Sul Carlos Tê / Rui Veloso Sou um pobre timoneiro Na noite imensa do mar A sul da minha solidão o cruzeiro Luz no céu para me guiar Lanterna de navegar Alivia-me a pressão Que o leme está a queimar Estamos longe do destino E eu não sei onde é que isto vai parar Cruzeiro do sul Lua não troces de mim Tão longe de casa eu sei O medo dança com as sombras E eu vejo o que inaginei Estou sózinho junto ao leme Não é tempo de poetas Já tombaram mais de dez E nós ainda aqui às voltas Procurando coisas que deus não fez Cruzeiro do sul
Canção De Marinhar Carlos Tê / Rui Veloso Tome-se o astrolábio, meça-se a latura solar Dê-se mais grau menos grau, conforme o balanço do mar Imaginem-se latitudes invisíveis meridianos Que a lenta ciência se apure nos astros e nos oceanos Rume-se ao sul sidério e às indias orientais Complete-se o planisfério com todos os novos locais Proceda-se sempre de acordo como manda o regimento Fazendo um diário de bordo por causa do esquecimento Já conheço o sete-estrêlo que me guia e orienta Hei-de vêr esses bazares de canela e de pimenta Anote-se boca de rio cabo maré e monção Costume de gente e feitio tudo fique em relação E mais o que o medo inventar que o senso há-de aclarar Assim se descreva e reúna em livro de marinhar Ao mundo ache-se o centro tire-se até bissectriz Navegue-se por fora e por dentro como se fosse um país Alterem-se as dimensões nas cartas e nos roteiros Até que ele caiba nas canções dos cafés de marinheiros Já não oiço as sereias j
Lançado Carlos Tê / Rui Veloso Cometi crime de amor à morte fui condenado Mas antes do cadafalso a um capitão fui chamado Que partia para a guiné e me prometeu perdão Se fosse numa galé e aceitasse a missão De à sorte ser lançado na má terra do gentio Sózinho e abandonado durante meses a fio Entre o inferno e o algóz dançava meu triste fado Medi os contras e os prós e escolhi ser lançado E assim fui embarcado até às costa da guiné E em terra fui deixado com biscoito medo e fé Com ordem de haver língua com todas as criaturas Saber das fontes do ouro e conhecer essas culturas Refrão: Fui lançado às feras o mato foi a minha casa Não havia primavera nem outono E era sempre um estio em braza Venci as febres do mato e o veneno das cobras Cativo levei mau trato paguei pelas minhas obras Das gentes tornei-me amigo com artes que já nem sei E ao fim de muitos meses era visita dum rei Fiz-me amante de gentia com ela juntei fazenda A vida até já sorria feliz era a
Cabo Sim Cabo Não Carlos Tê / Rui Veloso Para lá do cabo não limite da criação Fica o mar das trevas onde não foi mouro nem cristão Vou rumar ao turbilhão de brumas e macaréus Passá-lo é minha missão já me encomendei aos céus Para lá do cabo não vou e voltarei ou não A sul passei muitas léguas com o deserto a par Anotei ventos e àguas na carta de marear Até que surgiu outro cabo bramindo como um trovão De treva cem vezes pior que a treva do cabo não Para lá do bojador vou e voltarei ou não Era um mar caldo de enxofre que rugia furibundo Tragando barcas e homens até ao limbo do mundo Estava guardado para mim ir buscar toda a coragem Conter a bordo o motim e pôr de pé a marinhagem Para lá do bojador vou e voltarei ou não Passei a ponta medonha e o mar era só àgua e sal Mas na costa mais areia e de vivalma nem sinal Cabotamos mais abaixo ao correr da areia e do tempo Rumo à estrela do sul para lá do cabo branco Para lá do cabo branco vou e volta
Este é o segundo poema que vos deixo retirado do album "Auto da Pimenta", de Rui Veloso, edição comemorativa dos 500 anos dos Descobrimentos Portugueses. Conto aqui postar diáriamente, a partir de hoje, os restantes. Na verdade, este é o 1º tema do album sendo "São Miguel" o 2º. Por razões que, me parecem óbvias, alterei a ordem. Para quem não se lembra, existiu à época uma enorme polémica acerca da escolha de Carlos Tê e Rui Veloso para escreverem estes textos. Muitos dos intelectuais e pseudo intelectuais, onde se enquadram, Carlos do Carmo, Simone de Oliveira, Ruy de Carvalho, Izabel do Carmo, Nuno da Câmara Pereira, José Hermano Saraiva, José Matoso, Jaime Nogueira Pinto e outros que agora não me lembro, achavam que se deveria editar um disco de fado. Por mim só posso dizer que ainda bem que assim não foi. Sete Partidas Carlos Tê - José S. Martins / Rui Veloso Ouço uma voz que me canta velhas canções esquecidas E embala o meu sonho num cais de se
São Miguel Carlos Tê / Rui Veloso A oeste de finisterra ficam as ilhas perdidas Disse-me um corso galego que um dia as viu e perdeu As velhas cartografias também o dizem assim Como ter fortuna de as achar no mar oceano sem fim? Vinha um dia das Canárias ao largo com vento a favor Seguimos o voo das aves que tomamos por açores Até que ouvi do mastaréu a voz rouca do gajeiro Terra à vista lá ao longe no meio do nevoeiro Ó que ilha tão formosa Pisei ao sair do batel Dei-lhe então nome de santo Em dia de São Miguel
Imagem
Porque hoje é o Dia da Raça Carlos Tê
Ode à Paz Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, Pelas aves que voam no olhar de uma criança, Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, pela branda melodia do rumor dos regatos, Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego, dos pastos, Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, Pelos aromas maduros de suaves outonos, Pela futura manhã dos grandes transparentes, Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz, Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, Abre as por
"Wish You Were Here" So, so you think you can tell Heaven from Hell, blue skies from pain. Can you tell a green field from a cold steel rail? A smile from a veil? Do you think you can tell? And did they get you to trade your heroes for ghosts? Hot ashes for trees? Hot air for a cool breeze? Cold comfort for change? And did you exchange a walk on part in the war for a lead role in a cage? How I wish, how I wish you were here. We're just two lost souls swimming in a fish bowl, year after year, Running over the same old ground. What have we found? The same old fears. Wish you were here... Roger Waters (Pink Floyd) 1975
The Fletcher memorial home Take hall your overgrown infants away somewhere And build them a home a little place of their own The Fletcher memorial Home for incurable tyrants and kings And they can appear to themselves every day On closed circuit TV To make sure they're still real It's the only connection they feel "ladies and gentlemen. Please welcome Reagan and Haig Mr. Begin and Friend Mrs Thatcher and Paysley Mr, Brezhnev and party The ghost of McCarthy The memories of Nixon And now adding colour a group on anonymous Latin American meat packing glitterati" Did they expect us to treat them with any respect They can polish their medals and sharpen their Smiles, and amuse themselves playing games for a while Boom boom, bng bang, lie down you're dead Safe in the permanent gaze of a cold glass eye With their favourite toys They' ill be good girls and boys In the Fletcher memorial home for colonial Wasters of life and limb
Imagem
A Origem do mal Carlos Tê
Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é, A dor que já me não dói, A antiga e errônea fé, O ontem que dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia. Fernando Pessoa (1931)
Imagem
Tinha guardado para "postar" hoje, daqui do "Central Business District" de Lisboa o poema que esta Mariana tresandando a maresia aqui nos deixou por isso algures entre Alfama e a costa do Castelo aqui vai mais um do José Carlos Ary dos Santos .
Lisboa Alguém diz com lentidão: "Lisboa, sabes..." Eu sei. É uma rapariga descalça e leve, um vento súbito e claro nos cabelos, algumas rugas finas a espreitar-lhe os olhos, a solidão aberta nos lábios e nos dedos, descendo degraus e degraus e degraus até ao rio. Eu sei. E tu, sabias? Eugénio de Andrade
Faz-me o favor... Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Supor o que dirá Tua boca velada É ouvir-te já. É ouvir-te melhor Do que o dirias. O que és nao vem à flor Das caras e dos dias. Tu és melhor - muito melhor! Do que tu. Não digas nada. Sê Alma do corpo nu Que do espelho se vê. Mário Cesariny
Cogito eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranqüilamente todas as horas do fim. Torquato Neto
Pombo-Correio Os garotos da Rua Noel Rosa onde um talo de samba viça no calçamento, viram o pombo-correio cansado confuso aproximar-se em vôo baixo. Tão baixo voava: mais raso que os sonhos municipais de cada um. Seria o Exército em manobras ou simplesmente trazia recados de ai! amor à namorada do tenente em Aldeia Campista? E voando e baixando entrançou-se entre folhas e galhos de fícus: era um papagaio de papel, estrelinha presa, suspiro metade ainda no peito, outra metade no ar. Antes que o ferissem, pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado que o dos homens e o dos homens costuma ser mortal uma senhora o salva tomando-o no berço das mãos e brandamente alisa-lhe a medrosa plumagem azulcinza cinza de fundos neutros de Mondrian azul de abril pensando maio. 3235-58-Brasil dizia o anel na perninha direita. Mensagem não havia nenhuma ou a perdera o mensageiro como se perdem os maiores segredos de Estado que graças a isto se to
Ser poeta Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente! Florbela d'Alma da Conceição Espanca
Fanatismo Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver Pois que tu és já toda a minha vida! ... E, olhos postos em ti, digo de rastros: «Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...» Florbela Espanca
O MOSTRENGO O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; À roda da nau voou trez vezes, Voou trez vezes a chiar, E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo: «El-rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou trez vezes, Trez vezes rodou immundo e grosso. «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse: «El-rei D. João Segundo!» Trez vezes do leme as mãos ergueu, Trez vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer trez vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quere o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, D' El-rei D.
Imagem
O meu tesouro és tu eternamente tu não há passos divergentes para quem se quer encontrar... Jorge Palma
Imagem
Símbolos? Estou farto de símbolos... Mas dizem-me que tudo é símbolo. Todos me dizem nada. Quais símbolos? Sonhos. – Que o sol seja um símbolo, está bem... Que a lua seja um símbolo, está bem... Que a terra seja um símbolo, está bem... Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa, E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas Para o azul do céu? Mas quem repara na lua senão para achar Bela a luz que ela espalha, e não bem ela? Mas quem repara na terra, que é o que pisa? Chama terra aos campos, às árvores, aos montes. Por uma diminuição instintiva, Porque o mar também é terra... Bem, vá, que tudo isso seja símbolo... Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra, Mas neste poente precoce e azulando-se O sol entre farrapos finos de nuvens, Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado, E o que fica da luz do dia Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina Onde demorava outrora com o namorado que a dei
Abril com "R" «Trinta anos depois querem tirar o r se puderem vai a cedilha e o til trinta anos depois alguém que berre r de revolução r de Abril r até de porra r vezes dois r de renascer trinta anos depois Trinta anos depois ainda nos resta da liberdade o l mas qualquer dia democracia fica sem o d. Alguém que faça um f para a festa alguém que venha perguntar porquê e traga um grande p de poesia. Trinta anos depois a vida é tua agarra as letras todas e com elas escreve a palavra amor (onde somos sempre dois) escreve a palavra amor em cada rua e então verás de novo as caravelas a passar por aqui: trinta anos depois.» Manuel Alegre
Sou um guardador de rebanhos Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto. E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a v
Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus. Sou fácil de definir. Vi como um danado. Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma. Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei. Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver. Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais. Um dia deu-me o sono como a uma criança. Fechei os olhos e dormi. Além disso, fui o único poeta da Natureza. Alberto Caeiro
Centenário das palavras Todos os dias faz anos que foram inventadas as palavras. É preciso festejar todos os dias o centenário das palavras. Nós e as palavras Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras Já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas. Almada Negreiros (1921) Poeta d'Orpheu, futurista e tudo
Comentários O Corsário das Ilhas, já tem comentários, a partir de hoje, podem comentar toda a poesia e prosa aqui “postadas” e trocar opiniões entre todos.
Nota: Espero não ter estragado o Blog com um texto meu.
posta restante Posto e não posto . Gostava de postar mas não posto. Posta restante. Aposto que não posto a bosta da posta que tenho para postar. Posto bastante sem postar. Quase não posto. Aposto que não gosta da posta que posto. Posto para mim. Posto porque gosto. Não posta, aposto Porque sim Porque tem medo Da bosta da posta Aposto que sim. um texto poético para a blogosfera, publicado há tempos no Foguetabraze
MAR PORTUGUÊS Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Fernando Pessoa - a mensagem
Oiço falar Oiço falar da minha vocação mendicante e sorrio. Porque não sei se tal vocação não é apenas uma escolha entre riquezas, como Keats diz ser a poesia. Desci á rua pensando nisto, atravessei o jardim, um cão saltava á minha frente, louco com as folhas do outono que principiara e doiravam o chão. A música, digamos assim, a que toda a alma aspira, quando a alma aspira a ter do mundo o melhor dele, corria á minha frente, subia por certo aos ouvidos de deus com a ajuda de um cão, que nem sequer me pertencia. Eugénio de Andrade
O sal da língua Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer. Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo, não mudará a vida de ninguém - mas quem é hoje capaz de salvar o mundo ou apenas mudar o sentido da vida de alguém? Escuta-me, não te demoro. É coisa pouca, como a chuvinha que vem vindo devagar. São três, quatro palavras, pouco mais. Palavras que te quero confiar, para que não se extinga o seu lume, o seu lume breve. Palavras que muito amei, que talvez ame ainda. Elas são a casa, o sal da língua. Eugénio de Andrade
O lugar da Casa Uma casa que fosse um areal deserto; que nem casa fosse; só um lugar onde o lume foi aceso, e à sua roda se sentou a alegria; e aqueceu as mãos; e partiu porque tinha um destino; coisa simples e pouca, mas destino: crescer como árvore, resistir ao vento, ao rigor da invernia, e certa manhã sentir os passos de abril ou, quem sabe?, a floração dos ramos, que pareciam secos, e de novo estremecem com o repentino canto da cotovia. Eugénio de Andrade
Imagem
Eu tenho idéias e razões, Conheço a cor dos argumentos E nunca chego aos corações. Fernando António Nogueira de Pessoa 1932
Poetas portugueses traduzidos em Itália A editora italiana Mondadori acaba de publicar uma antologia de mais de 400 páginas de poesia portuguesa, incluindo Pedro Tamen, Gastão Cruz, Manuel Alegre e Nuno Júdice. Chama-se "Inchiostro nero che danza sulla carta" ("tinta negra que dança no pápel)", e é organizada e traduzida por Giulia Lanciani, com prefácio do poeta e ensaísta Manuel Gusmão. Cada poeta tem cerca de 70 páginas em edição bilingue. Boa noticia esta, para a literatura Portuguesa.
O poema que Eu gostava de ter escrito e não escrevi. O poema que Eu gostava de pôr aqui e Ela não deixou, o poema que está aqui
Poeta castrado, não! Serei tudo o que disserem Por inveja ou negação: Cabeçudo dromedário Fogueira de exibição Teorema corolário Poema de mão em mão Lãzudo publicitário Malabarista cabrão. Serei tudo o que quiserem: Poeta castrado, não! Os que entendem como eu As linhas com que me escrevo Reconhecem o que é meu Em tudo quanto lhes devo: Ternura como já disse Sempre que faço um poema; Saudade que se partisse Me alagaria de pena; E também uma alegria Uma coragem serena Em renegar a poesia Quando ela nos envenena. Os que entendem como eu A força que tem um verso Reconhecem o que é seu Quando lhes mostro o reverso: Da fome já não se fala -É tão vulgar que nos cansa- Mas que dizer de uma bala Num esqueleto de criança? Do frio não reza a história -a morte é branda e letal- Mas que dizer da memória De uma bomba de napalm? E o resto que pode ser O poema dia a dia? -Um bisturi a crescer Nas coxas de uma judia; Um filho que vai nascer Parido por
Crucificação Vertical sou contra Deus Horizontal a favor. Nesta cruz me crucifico Vertical com desespero Horizontal com amor. Natália Correia
Açor Aveludado carniceiro de ninhos e pai solícito, ei-lo afogador de um pato selvagem: as patas submergem o amigo da água: casco pouco a pouco afundado, expira. Para a margem o leva; oculto, acutila. E tudo viu Deus, cego. António Osório A Ignorância da Morte Lisboa, Edição de Autor, 1978
Poema em Linha Recta Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondìvelmente parasita, Indesculpàvelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapêtes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do sôco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do sôco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mu
Chove. Que fiz eu da vida? Fiz o que ela fez de mim... De pensada, mal vivida... Triste de quem é assim! Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Tenho saudade, entre o tédio, Só do que nunca quis ter... Quem eu pudera ter sido, Que é dele? Entre ódios pequenos De mim, 'stou de mim partido. Se ao menos chovesse menos! Fernando Pessoa, 23-10-1931
O Menino da sua Mãe No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas traspassado – Duas, de lado a lado –, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! Que jovem era! (Agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: «O menino da sua mãe». Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lhe a mãe. Está inteira É boa a cigarreira, Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço... Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: "Que volte cedo, e bem!" (Malhas que o Império tece!) Jaz morto, e apodrece, O menino da sua mãe. Fernando Pessoa 1926
Balança No prato da balança um verso basta para pesar no outro a minha vida. Eugénio de Andrade
Sobre Flancos e Barcos Havia ainda outro jardim o da minha vida exíguo é certo mas o do meu olhar são talvez dois pássaros que se amam um sobre o outro ou dois cães de pé é sempre a mesma inquietação este delírio branco ou o rumor da chuva sobre flancos e barcos o inverno vai chegar sobre a palha ainda quente a mão uma doçura de abelha muito jovem era o sopro distante das manhãs sobre o mar e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração é o silêncio é por fim o silêncio vai desabar Eugénio de Andrade
Insomnia Não durmo, nem espero dormir. Nem na morte espero dormir. Espera-me uma insomnia da largura dos astros, E um bocejo inutil do comprimento do mundo. Não durmo; não posso ler quando accordo de noite, Não posso escrever quando accordo de noite, Não posso pensar quando accordo de noite – Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite! Ah, o opio de ser outra pessoa qualquer! Não durmo, jazo, cadaver accordado, sentindo, E o meu sentimento é um pensamento vazio. Passam por mim, transtornadas, coisas que me succederam – Todas aquellas de que me arrependo e me culpo –; Passam por mim, transtornadas, coisas que me não succederam – Todas aquellas de que me arrependo e me culpo –; Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada, E até d'essas me arrependo, me culpo, e não durmo. Não tenho força para ter energia para accender um cigarro. Fito a parede fronteira do quarto como se fôsse o universo. Lá
Imagem
A alcova Desce não sei por onde Até não me encontrar. Ascende um leve fumo Das minhas sensações. Deixo de me incluir Dentro de mim. Não há Cá-dentro nem lá-fora. E o deserto está agora Virado para baixo. A noção de mover-me Esqueceu-se do meu nome. Na alma meu corpo pesa-me. Sinto-me um reposteiro Pendurado na sala Onde jaz alguém morto. Qualquer coisa caiu
Cogito eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranqüilamente todas as horas do fim. Torquato Neto
Podres poderes Enquanto os homens exercem seus podres poderes Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos E perdem os verdes Somos uns boçais Queria querer gritar setecentas mil vezes Como são lindas, como são lindos os burgueses Os japoneses Mas tudo ‚ muito mais Ser que nunca faremos senão confirmar A incompetência da América Católica Que sempre precisar de ridículos tiranos Ser , ser que, ser que, ser que ser Ser que essa minha estúpida retórica Ter que soar, ter que se ouvir Por mais mil anos? Enquanto os homens exercem seus podres poderes Índios, padres e bichas, negros e mulheres E adolescentes Fazem o carnaval Queria querer cantar afinado como eles Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase Ser indecente Mas tudo ‚ muito mal Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice For jorrar sangue demais Nos pantanais, nas cidades, catingas E nos gerais Ser que apenas os hermetismos pascoais E os tons e os mil tons, seus son
VENDAVAL Ó vento do norte, tão fundo e tão frio, Não achas, soprando por tanta solidão, Deserto, penhasco, coval mais vazio Que o meu coração! Indômita praia, que a raiva do oceano Faz louco lugar, caverna sem fim, Não são tão deixados do alegre e do humano Como a alma que há em mim! Mas dura planície, praia atra em fereza, Só têm a tristeza que a gente lhes vê E nisto que em mim é vácuo e tristeza É o visto o que vê. Ah, mágoa de ter consciência da vida! Tu, vento do norte, teimoso, iracundo, Que rasgas os robles - teu pulso divida Minh'alma do mundo! Ah, se, como levas as folhas e a areia, A alma que tenho pudesses levar - Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia De eu ter que pensar! Abismo da noite, da chuva, do vento, Mar torvo do caos que parece volver - Porque é que não entras no meu pensamento Para ele morrer? Horror de ser sempre com vida a consciência! Horror de sentir a alma sempre a pensar! Arranca-me, é vento; do chão da
O MOSTRENGO O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; A roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo: «El-Rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso. «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse: «El-Rei D. João Segundo!» Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!»
Imagem
Todas as cartas de amor são ridículas Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor, Têm de ser Ridículas. Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas. Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso Cartas de amor Ridículas. A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor É que são Ridículas. (Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas.) 21-10-1935
Imagem
Lenta, Descansa Lenta, descansa a onda que a maré deixa. Pesada cede. Tudo é sossegado. Só o que é de homem se ouve. Cresce a vinda da lua. Nesta hora, Lídia ou Neera Ou Cloe, Qualquer de vós me é estranha, que me inclino Para o segredo dito Pelo silêncio incerto. Tomo nas mãos, como caveira, ou chave De supérfluo sepulcro, o meu destino, E ignaro o aborreço Sem coração que o sinta. Ricardo Reis