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A mostrar mensagens de março, 2004
O poema que Eu gostava de ter escrito e não escrevi. O poema que Eu gostava de pôr aqui e Ela não deixou, o poema que está aqui
Poeta castrado, não! Serei tudo o que disserem Por inveja ou negação: Cabeçudo dromedário Fogueira de exibição Teorema corolário Poema de mão em mão Lãzudo publicitário Malabarista cabrão. Serei tudo o que quiserem: Poeta castrado, não! Os que entendem como eu As linhas com que me escrevo Reconhecem o que é meu Em tudo quanto lhes devo: Ternura como já disse Sempre que faço um poema; Saudade que se partisse Me alagaria de pena; E também uma alegria Uma coragem serena Em renegar a poesia Quando ela nos envenena. Os que entendem como eu A força que tem um verso Reconhecem o que é seu Quando lhes mostro o reverso: Da fome já não se fala -É tão vulgar que nos cansa- Mas que dizer de uma bala Num esqueleto de criança? Do frio não reza a história -a morte é branda e letal- Mas que dizer da memória De uma bomba de napalm? E o resto que pode ser O poema dia a dia? -Um bisturi a crescer Nas coxas de uma judia; Um filho que vai nascer Parido por
Crucificação Vertical sou contra Deus Horizontal a favor. Nesta cruz me crucifico Vertical com desespero Horizontal com amor. Natália Correia
Açor Aveludado carniceiro de ninhos e pai solícito, ei-lo afogador de um pato selvagem: as patas submergem o amigo da água: casco pouco a pouco afundado, expira. Para a margem o leva; oculto, acutila. E tudo viu Deus, cego. António Osório A Ignorância da Morte Lisboa, Edição de Autor, 1978
Poema em Linha Recta Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondìvelmente parasita, Indesculpàvelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapêtes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do sôco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do sôco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mu
Chove. Que fiz eu da vida? Fiz o que ela fez de mim... De pensada, mal vivida... Triste de quem é assim! Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Tenho saudade, entre o tédio, Só do que nunca quis ter... Quem eu pudera ter sido, Que é dele? Entre ódios pequenos De mim, 'stou de mim partido. Se ao menos chovesse menos! Fernando Pessoa, 23-10-1931
O Menino da sua Mãe No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas traspassado – Duas, de lado a lado –, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! Que jovem era! (Agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: «O menino da sua mãe». Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lhe a mãe. Está inteira É boa a cigarreira, Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço... Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: "Que volte cedo, e bem!" (Malhas que o Império tece!) Jaz morto, e apodrece, O menino da sua mãe. Fernando Pessoa 1926