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A mostrar mensagens de fevereiro, 2005
In memoriam Ao meu morto querido Na cidade de Assis, «il Poverello» Santo, três vezes santo, andou pregando Que o Sol, a Terra, a flor, o rocio brando, Da pobreza o tristíssimo flagelo, Tudo quanto há de vil, quanto há de belo, Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando, Pelas estradas da Umbria foi forjando Da cadeia do amor o maior elo! «Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água...» Ah! Poverello! Em mim, essa lição Perdeu-se como vela e mar de mágoa Batida por furiosos vendavais! - Eu fui na vida a irmã de um só Irmão, E já não sou a irmã de ninguém mais! Florbela Espanca
Poema da auto-estrada Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta. Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina, de impaciente nervura. como guache lustroso, amarelo de idantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura. Fuge, fuge, Leonoreta: Vai na brasa, de lambreta. Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa e bem segura. Com um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte, enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, o céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta, lembra um demónio com asas. Na confusão dos sentidos já nem percebe Leonor se o que lhe chega aos ouvidos são ecos
Cão Cão passageiro, cão estrito Cão rasteiro cor de luva amarela, Apara lápis, fraldiqueiro, Cão liquefeito, cão estafado Cão de gravata pendente, Cão de orelhas engomadas, de remexido rabo ausente, Cão ululante, cão coruscante, Cão magro, tétrico, maldito, a desfazer-se num ganido, a refazer-se num latido, cão disparado: cão aqui, cão ali, e sempre cão. Cão marrado, preso a um fio de cheiro, cão a esburgar o osso essencial do dia a dia, cão estouvado de alegria, cão formal de poesia, cão-soneto de ão-ão bem martelado, cão moido de pancada e condoído do dono, cão: esfera do sono, cão de pura invenção, cão pré fabricado, cão espelho, cão cinzeiro, cão botija, cão de olhos que afligem, cão problema... Sai depressa, ó cão, deste poema! Alexandre O'Neill
Abaixo el-rei Sebastião É preciso enterrar el-rei Sebastião é preciso dizer a toda a gente que o Desejado já não pode vir. É preciso quebrar na ideia e na canção a guitarra fantástica e doente que alguém trouxe de Alcácer Quibir. Eu digo que está morto. Deixai em paz el-rei Sebastião deixai-o no desastre e na loucura. Sem precisarmos de sair do porto temos aqui à mão a terra da aventura. Vós que trazeis por dentro de cada gesto uma cansada humilhação deixai falar na nossa voz a voz do vento cantai em tom de grito e de protesto matai dentro de vós el-rei Sebastião. Quem vai tocar a rebate os sinos de Portugal? Poeta: é tempo de um punhal por dentro da canção. Que é preciso bater em quem nos bate é preciso enterrar el-rei Sebastião. Manuel Alegre , O canto e as armas